Texto de Raimundo Luiz da Silveira Neto'
Insuficiência Renal Crônica
Os rins desempenham uma série de funções no organismo: eliminam as toxinas advindas do metabolismo, regulam as concentrações dos eletrólitos, o volume extracelular, o pH sanguíneo e a pressão arterial. Os rins têm ainda importante função endócrina, sendo responsáveis pela síntese da eritropoietina e pela síntese da forma ativada da vitamina D. A insuficiência renal crônica (IRC) é a perda lenta, progressiva e irreversível dessas funções.
Tabela de conteúdo
|
A IRC é insidiosa. Com uma perda de até 50% da função renal, os pacientes podem não exibir quaisquer sintomas. Isso ocorre porque os néfrons têm uma enorme reserva funcional, ou seja, os rins têm maior potencial de filtração que o mínimo necessário para a homeostase. Basta lembrar que é possível viver com um único rim. Não bastasse a grande reserva funcional, mais uma propriedade do néfron favorece a pobreza de sintomas no início da doença: a sua capacidade de adaptação. Os néfrons sobreviventes passam a exercer as atividades dos néfrons perdidos. Não é exagero dizer que, quando vários néfrons morrem, os remanescentes passam a “dar plantão” e “fazer hora extra” - uma alusão ao trabalho a mais que supre as funções dos néfrons perdidos.
Os néfrons sobreviventes passam a filtrar mais, pois se aumenta a pressão de filtração. Isso ocorre provavelmente porque ocorre uma vasodilatação da arteríola aferente decorrente da maior produção de prostaglandinas e vasoconstricção da arteríola eferente decorrente da ação da angiotensina II. Veja a figura:
FIGURA 01
O preço para se manter a homeostase é um demasiado trabalho extra aos néfrons remanescentes, e isso acaba sendo prejudicial. Para que esse néfron filtre mais ocorre aumento da pressão hidráulica intraglomerular. As delicadas paredes glomerulares não resistem a essas pressões de cisalhamento e vários fenômenos de natureza inflamatória passam a ocorrer. Outros mecanismos contribuem para maior estresse aos néfrons remanescentes: hipertrofia glomerular, formação de trombos intraglomerulares, proliferação exagerada de células glomerulares e matriz mesangial, deposição glomerular de lipídios, estiramento das células endoteliais e mesangiais, lesão dos podócitos, deposição de material protéico subendotelial, inflamação renal, dentre outros. Com isso, mais néfrons são destruídos e assim, ocorre maior sobrecarga hemodinâmica. Esse círculo vicioso agrava a perda do parênquima renal. Cada vez mais, sobra trabalho e falta néfron!
FIGURA 02
À medida que mais e mais néfrons são perdidos, pequenos sinais e sintomas podem sobrevir. Quando a função renal encontra-se em torno de 30% pode ocorrer edema de membros inferiores, hipertensão arterial, edema periorbitário, anemia, entre outros. Como a perda de função renal é irreversível e progressiva, inexoravelmente, mais néfrons serão perdidos e mesmo a “dupla jornada de trabalho” dos néfrons remanescentes não será suficiente para realizar uma adequada filtração. O paciente desenvolverá mais sinais que comporão a chamada síndrome urêmica. Os rins evoluirão para um estado de doença Renal em Fase Terminal (DRFT) com níveis de taxa de filtração glomerular (TFG) menores que 15% do normal. O estágio de DRFT é alcançado em um período variável de 3 a 20 anos em média, mas duas situações (a glomerulonefrite rapidamente progressiva e a necrose cortical aguda) podem levar a DRFT em curto período.
Tab. 01 - Estadiamento da DRC
Estágio | Filtração Glomerular (ml/min) | Grau de Insuficiência Renal |
0 | >90 | Grupos de risco para DRC* com
Ausência de Lesão Renal |
1 | >90 | Lesão Renal com Função Renal Normal |
2 | 60-89 | Insuficiência Renal Leve ou Funcional |
3 | 30-59 | Insuficiência Renal Laboratorial ou Moderada |
4 | 15-29 | Insuficiência Renal Severa ou Clínica |
5 | <15 | Insuficiência Renal Terminal ou Dialítica |
* Grupos de risco para DRC: HAS, DM, parentes de paciente com DM, HAS e DRC.
As mais importantes causas de IRC são hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus e glomerulonefrites. Nos EUA, a causa mais importante é a DM (43,7%), seguida pela HAS (26,3%) e glomerulonefrites (9,4%) – dados de 2002. No Brasil, a HAS parece ser a principal causa. Acompanhe na tabela a evolução das principais causas de IRC no Brasil ao longo dos anos.
Tab. 02 – Evolução das principais causas de IRC no Brasil
Diagnóstico | 1987 | 1997 | 2005 |
Glomerulonefrite Crônica | 36,5% | 27,5% | 13,0% |
NIC/PNC | 16,5% | 11,0% | 9,0% |
Nefroesclerose | 10,8% | 16,8% | 27,1% |
Diabetes Mellitus | 8,1% | 13,0% | 22,3% |
D. Renal Policística | 6,7% | 3,0% | 5,4% |
Nefropatia lúpica | 4,7% | 1,3% | 2,1% |
Outros | 1,7% | 4,6% | 12,1% |
Indeterminado | 15,0% | 22,8% | 9,0% |
Fonte: Sabbaga E. 1987; Sec. Saúde SP, 1997; Romão Jr JE, 2004;
A síndrome urêmica é o conjunto de sinais e sintomas que começam a surgir quando a FG está < 30 ml/min. Ela decorre de dois eventos: a) acúmulo de várias toxinas que deixam de ser excretadas e b) perda da função endócrina renal (diminuição da síntese de eritropoietina e de calcitriol). Dos produtos do catabolismo protéico acumulados, surgem várias manifestações clínicas. Entre as escórias nitrogenadas destacam-se uréia, guanidinas, ácido guanidinosuccínico, sulfato de inoxidil, miosinositol, β-2-microglobulina, aminas alifáticas e poliaminas. Apesar de muitas vezes ser imputada como responsável pela maioria dos sintomas urêmicos, somente acima de 250mg/dL, a uréia isoladamente é capaz de gerar sintomas. Provavelmente nenhuma toxina isolada é capaz de gerar todos os sintomas da síndrome urêmica.
O rim normal consegue variar a excreção de água e eletrólitos de acordo com as necessidades corpóreas. Na DRC, como ocorre menor filtração, acumula-se sódio. Para tentar evitar esse processo, cada néfron remanescente adapta-se aumentando a sua fração excretória de sódio (FENa). Resumidamente, pode-se dizer que cada unidade filtradora excretará mais sódio que normalmente está habituado a excretar. De tal maneira é essa adaptação para livrar-se do excesso, que o rim perde sua capacidade de desadaptação. Os néfrons não conseguem mais voltar a excretar as antes habituais menores quantidades de sódio. Tampouco, com o progredir da perda de néfrons, a adaptação consegue ser suficiente para garantir uma adequada homeostase desse íon. Como resultado, nem os néfrons conseguem excretar o excesso de sódio, nem são capazes de retê-lo em situações em que seja necessário conservá-lo. Veja a figura:
FIGURA 03
Dessa maneira, se o paciente ingere uma quantidade maior de sal, ocorre retenção, levando à hipervolemia e suas conseqüências: edema em face, membros inferiores, ascite, derrame pleural e pericárdio, HAS, EAP e etc. Caso ele ingira pouco, a adaptação que proporcionou aumentar a FENa faz com que boa parte do sódio seja perdida na urina e o paciente apresente hipovolemia. Apesar de ocorrer uma tendência a retenção de sódio, na verdade ocorre hiponatremia e não hipernatremia na DRC. Por quê? Isso ocorre porque, com a baixa filtração, o sódio é retido; mas, com o sódio, a água também é absorvida. Ela acaba diluindo o sódio, assim, ocorre hipervolemia com hiponatremia dilucional, apesar de estar ocorrendo retenção de ambos.
Apesar de aumentar a fração de excreção dos outros eletrólitos que estejam sendo retidos, como já redundantemente explanado, com o progredir da DRC, a adaptação torna-se insuficiente e eles terminam por acumular-se. Sendo assim, ocorre hipercalemia, hipermagnesemia e hiperfosfatemia. Com o cálcio, entretanto, ocorre o oposto – hipocalcemia. Esse mecanismo será discutido adiante, na área destinada à Osteodistrofia Renal (OR). Adianta-se apenas o fato de o cálcio permanecer predominantemente ligado à albumina, que obviamente, não é filtrada. Apenas uma pequena quantidade de cálcio permanece na forma livre, podendo então sofrer influência direta do controle eletrolítico exercido pelos rins.
A maior parte dos íons hidrogênio (2/3) é excretada ligada à amônia produzida no túbulo renal. Para cada H+ excretado, um íon bicarbonato é absorvido. Na IRC, o rim produz menos amônia e o H+ deixa de ser excretado e conseqüentemente o bicarbonato deixa de ser absorvido. Na falta de bicarbonato, o rim passa a aumentar a absorção de cloretos para compensar a carência de cargas negativas. Nesse momento instala-se uma acidose hiperclorêmica. Com o progredir da perda de função renal (FG ~ 5-10 ml/min), vários ânions deixam de ser excretados, como o sulfato (proveniente do metabolismo das proteínas), urato, fosfato, lactato, acetato e etc. Assim a acidose passa a ser com anion gap elevado.
O ácido guanidinosuccínico inibe a atividade plaquetária induzida pelo ADP, predispondo a sangramentos em vários locais. A anemia contribuiu ainda mais para o distúrbio hemorrágico, uma vez que as hemácias favorecem a interação das plaquetas com o endotélio lesado. As toxinas ainda deprimem a função neutrofílica, favorecendo o surgimento de infecções bacterianas e fúngicas que potencialmente podem evoluir para sepse grave. Também ocorre discreta linfopenia e disfunção linfocitária. A imunidade humoral está deprimida, notadamente ao combate do HBV e ao vírus da influenza. A anemia, por ter mecanismo muito mais complexo será tratada em um tópico a parte.
A anemia é um dos principais manifestações da doença renal e é responsável por uma série de sintomas como fadigabilidade, alterações neuro-psiquiáticas, astenia, indisposição física e mental, cefaléia, déficit cognitivo, anorexia, insônia, tendência a sangramento, está associada à maior mortalidade cardiovascular, hipertrofia ventricular esquerda, insuficiência cardíaca e má qualidade de vida. Ela instala-se à medida que a filtração glomerular cai abaixo de 20-30 ml/min/1,73m2.
Por que o nefropata tem anemia? |
1. Deficiência relativa de Eritropoietina |
2. Deficiência de Ferro
2.1 Má absorção 2.2 Sangramentos 2.3 Pouca ingestão 2.4 Deficiência funcional |
3. Diminuição da Meia-vida das Hemácias (pelo PTH e outras toxinas) |
4. Fibrose óssea |
5. Outros: baixo folato, intoxicação pelo alumínio |
Sob estímulo hipóxico, no rim, mais especificamente nos capilares peritubulares e em fibroblastos presentes no interstício renal, é produzida a maior parte da eritropoietina. Esse hormônio promove maior síntese de hemoglobina na medula óssea, por inibir a apoptose de células progenitoras da linhagem eritróide. A progressão da insuficiência concorre para a menor síntese de eritropoietina e assim, a medula produz menos eritrócitos. Veja na figura o esquema da participação do rim na síntese de hemoglobina.
Figura 04
A elaboração do heme depende ainda de outros fatores. A adequada síntese requer:
a) estoques adequados de ferro,
b) mobilização do ferro dos estoques, presentes no sistema reticuloendotelial, e transporte adequado do mesmo à medula pela transferrina.
Não bastasse o precário estímulo para a síntese de hemoglobina, decorrente da eritropoietinopenia relativa, o paciente urêmico dispõem de poucas reservas para a já tão prejudicada síntese. Por quê?
1 - A anorexia comum desses pacientes leva a menor ingestão alimentar, e daí, a diminuição das reservas de ferro. Outro problema: o trato gastrointestinal desses pacientes pode ainda ter uma menor capacidade de absorver ferro.
2 - As toxinas urêmicas podem ainda lesar a mucosa gastrointestinal. Além disso, as toxinas urêmicas promovem inibição plaquetária. Essa combinação nociva (disfunção plaquetária + lesão da mucosa) predispõe ao sangramento, notadamente no trato gastrointestinal, levando a perda crônica de ferro. O resultado é um desastroso balanço negativo: pouco ferro é absorvido e muito ferro é perdido.
1- Em doenças inflamatórias como o LES, por exemplo, ainda ocorre uma “dificuldade” para mobilizar as reservas – o que é chamado de anemia da doença crônica. Nessa situação, por causa da inflamação crônica, o organismo pode até dispor de bons estoques de ferro (ferritina elevada), mas este não chega à medula (a saturação de transferrina é baixa). O ferro fica “aprisionado” na ferritina e não fica disponível à medula. Há uma deficiência funcional de ferro.
A anemia da doença crônica decorre de outros mecanismos: redução da meia-vida das hemácias, redução da produção renal de eritropoietina e menor resposta dos precursores eritróides à ação da eritropoietina. No nefropata, o paratormônio (PTH) está aumentado devido ao hiperparatireoidismo secundário (esse tema será mais bem dissecado no item OR.
Por três mecanismos principais o PTH é considerado um dos principais vilões no desequilíbrio da homeostase hematológica.
1) Ele promove fibrose óssea: a fibrose dos ossos, principalmente dos ossos chatos, terá como conseqüência a diminuição do compartimento onde as células vermelhas seriam produzidas.
2) Inibe o efeito da eritropoietina na medula óssea.
3) Diminui a meia-vida das hemácias, a qual cai de aproximadamente 120 dias para cerca de 65-70 dias (outras toxinas também participam desse processo)
Normalmente, a resposta medular a uma anemia é o aumento do seu poder de síntese, levando a riqueza celular no mielograma. Entretanto, isso não ocorre na anemia do renal crônico. A medula óssea costuma ser hipoproliferativa, pois não há eritropoietina para promover este estímulo compensatório. A anemia é normalmente normocítica normocrômica, mas pode ser também microcítica, ocasionada por deficiência de ferro. Os pacientes que realizam hemodiálise podem ter anemia microcítica por intoxicação por alumínio (presente na água da diálise), ou megaloblástica, ocasionada por carência de folato - perdido na diálise.
O mau funcionamento renal com a conseqüente anemia pode ser comparado a um mau funcionamento de uma indústria. Imagine o calamitoso estado de uma indústria onde: 1) falte um patrão para orientar a produção (falta eritropoietina); 2) faltem matérias-primas (faltam estoques de ferro); 3) as máquinas sejam pouco produtivas (no nefropata ocorre intensa fibrose óssea, diminuindo a área destinada à síntese); 4) os funcionários não realizem suas obrigações (o estoque de ferro não é conduzido pela transferrina ao sítio de produção); 5) os produtos sejam de má qualidade (hemácias urêmicas duram apenas 70 dias).
O tratamento da anemia da IRC é à base de eritropoietina que tem como efeito colateral o aumento da pressão arterial. A reposição de eritropoietina evita sobrecarga ventricular esquerda, diminui a mortalidade cardiovascular e posterga a entrada do paciente na diálise. O controle do hiperparatireoidismo contribui para a melhora da anemia. A reposição de eritropoietina só deve ser feita quando houver estoques adequados ferro e folato, por isso é comum repor também esses nutrientes. O objetivo do tratamento é atingir hemoglobina maior ou igual a 11mg/dl.
O rim é o maestro da homeostase corpórea e um verdadeiro caos metabólico instala-se progressivamente, à medida que a função renal deteriora. Dessa maneira, até mesmo “pequenos” desequilíbrios na excreção de certas substâncias acarretam conseqüências, que em cascata, levam a grande morbidade ao doente.
A homeostase do cálcio e do fósforo é seriamente afligida com a progressiva diminuição da taxa de filtração. No rim, mais especificamente no túbulo proximal, existe uma enzima chamada alfa-1-hidroxilase. Essa enzima transforma o metabólito inativo da vitamina D produzido no fígado, na forma ativa da vitamina D, o 1,25-dihidroxicalciferol ou simplesmente calciferol. Esse hormônio atua em dois órgãos principais (intestino e paratireóides) para o adequado balanço de cálcio e fósforo. No intestino, a vitamina D ativa promove estímulo para a absorção de cálcio para o sangue. Nas paratireóides, juntamente com o cálcio, são os principais inibidores da liberação do paratormônio, através de feed back negativo. Veja na figura o mecanismo fisiológico da atuação do 1,25-dihidroxicalciferol.
FIGURA
Como é sintetizado no rim, na IRC a produção do 1,25-dihidroxicalciferol é inibida. Logo, a carência de vitamina D ativa acarreta:
1) na paratireóide, alta liberação de PTH (hiperparatireoidismo secundário);
2) no intestino, baixa reabsorção de cálcio.
Para responder a essa pergunta precisamos entender o metabolismo do fósforo.
O fósforo provém do metabolismo das proteínas e é excretado diariamente pelos rins. Mas com a perda de função renal, esse metabólito começa a se acumular no organismo. Para tentar evitar esse problema, os néfrons remanescentes tentam exercer as atividades dos néfrons perdidos, “sobrecarregando-se”, hiperfiltrando e aumentando a sua fração de excreção. O resultado dessa “jornada extra de trabalho” é calamitosa. Os néfrons passam a lidar com cargas elevadas de fósforo na sua luz, as quais, em grande quantidade inibem a alfa-1-hidroxilase. A enzima inibida deixa de converter o metabólito hepático em vitamina D ativa. Ou seja, a “boa vontade” do néfron em “fazer trabalho extra”, ao invés de benéfico, acarreta prejuízo! O fósforo permanece elevado na corrente sanguínea pela ineficiência do mecanismo excretor e, além disso, ocorre diminuição da síntese da calcitriol.
FIGURA
FIGURA
Com a deficiência de vitamina D, ocorre má absorção de cálcio no intestino, acarretando hipocalcemia. O fósforo em altas quantidades ainda liga-se ao cálcio sérico, quelando-o, agravando ainda mais os baixos níveis de cálcio. O fósforo ainda pode atuar nas paratireóides estimulando a liberação de PTH. A hipocalcemia também é um estímulo para a liberação do PTH. O trio - hipocalcemia, deficiência de Vitamina D e hiperfosfatemia – acarreta o hiperparatireoidismo secundário.
FIGURA
O cálcio, por ser um cátion que circula predominantemente ligado a albumina, é pouco filtrado pelo rim e por isso, a sua homeostase é apenas indiretamente afetada pela insuficiência renal. Basicamente, a hipocalcemia na IRC decorre da má absorção intestinal pela carência de vitamina D e do efeito quelante do fósforo, como supracitado.
Como ocorre hiperparatireoidismo secundário, teoricamente, o paratormônio (PTH) deveria descalcificar os ossos e corrigir a hipocalcemia, mas isso pode não ocorrer. A hiperfosfatemia acarreta mais um prejuízo: ela promove um fenômeno chamado de resistência óssea à ação do PTH. O PTH em altas quantidades agirá sobre o osso causando intensa fibrose, mas não conseguirá retirar cálcio dos mesmos em quantidades suficientes parar corrigir a hipocalcemia.
Em resumo, a perda da homeostase do cálcio e fósforo na insuficiência renal crônica trás graves conseqüências para o intestino, os ossos e para a glândula paratireóide. Essa perda de homeostase resume-se a duas alterações básicas metabólicas: diminuição da excreção de fósforo e diminuição da produção de vitamina D. O trio - hipocalcemia, deficiência de vitamina D e hiperfosfatemia - é responsável pela estimulação da glândula paratireóide, levando ao hiperparatireoidismo secundário, comum no nefropata. Veja na tabela como a hiperfosfatemia promove desregularização da homeostase do cálcio.
Sabemos que o grande vilão na osteodistrofia é o fosfato. Por isso, é fundamental diminuir o aporte desse ânion. O fosfato advém do metabolismo protéico. Assim, deve-se restringir a ingesta protéica (800mg/dia de fosfato). Esse balanço pode ser difícil, uma vez que restrições dietéticas podem levar a desnutrição do nefropata. Uma medida importante para evitar a absorção de fósforo para o corpo é o uso de carbonato de cálcio ou sevelamer. Quando ingerido durante as refeições, eles ligam-se ao fosfato presente nas proteínas, gerando fosfato de cálcio. O sal inorgânico é pouco solúvel e não é absorvido, sendo evacuado com as fezes Como na IRC ainda ocorre hipocalcemia – lembre-se que há pouco calcitriol para absorver cálcio do intestino – pode ser feita a suplementação de carbonato de cálcio entre as refeições, pois o objetivo não é quelá-lo com o fosfato ingerido, e sim favorecer a sua absorção. Lembre-se: o cálcio ligado ao fosfato no intestino não é absorvido. Caso os níveis de PTH mantenham-se elevados, apesar da suplementação de cálcio, pode-se tentar repor análogos da vitamina D ativa – o calcitriol, para tentar inibir a paratireóide e controlar os níveis de fósforo e cálcio. Ressalta-se que se deve ter muito cuidado nesse manejo, pois a administração de carbonato de cálcio e calcitriol pode levar a elevados valores de cálcio sérico. Se isso ocorrer, o produto cálcio x fósforo pode ser maior que 50, favorecendo a calcificações teciduais. É importante frisar que as preparações disponíveis mais comuns que tratam osteoporose têm em sua fórmula a forma inativa da vitamina D e carbonato de cálcio. Essas formulações não servem como estratégia para repor vitamina D no nefropata, uma vez que ele já dispõe de vitamina D inativa em adequados níveis (desde que não possua também uma hepatopatia).
Compreendida a fisiopatologia dos distúrbios endócrinos, hidroeletrolíticos e hematológicos podemos sumarizar os principais efeitos presentes na síndrome urêmica por sistemas.
O ácido guanidinosuccínico inibe a atividade plaquetária induzida pelo ADP, predispondo a sangramentos em vários locais. A anemia contribuiu ainda mais para o distúrbio hemorrágico, uma vez que as hemácias favorecem a interação das plaquetas com o endotélio lesado. As toxinas ainda deprimem a função neutrofílica, favorecendo o surgimento de infecções bacterianas e fúngicas que potencialmente podem evoluir para sepse grave. Também ocorre discreta linfopenia e disfunção linfocitária. A imunidade humoral está deprimida, notadamente ao combate do HBV e ao vírus da influenza. A anemia, por ter mecanismo muito mais complexo foi tratada no tópico a parte.
As toxinas urêmicas não eliminadas causam inflamação da mucosa do trato gastrointestinal. Além disso, as toxinas podem agir sobre o sistema nervoso entérico, causando gastroparesia urêmica. Os distúrbios plaquetários podem ainda favorecer a sangramentos. Podem sobrevir assim várias manifestações como: náuseas, vômitos, melena, hematoquesia, falta de apetite, plenitude gástrica. A gastroduodenite inespecífica pode favorecer ainda o surgimento de diarréia urêmica. O íleo urêmico predispõem a distensão abdominal. A inflamação do cólon pode levar a supercrescimento bacteriano.
As escórias nitrogenadas têm efeito tóxico aos neurônios. Além disso, o PTH aumentado leva a entrada de cálcio no neurônio, promovendo disfunções no potencial de ação neuronal. Os efeitos deletérios ocorrem no sistema nervoso central, periférico e autonômico. Os efeitos crônicos da uremia em nível de SNC são disfunção cognitiva progressiva, dificuldade de concentração, sonolência, confabulação, apraxia motora, agnosias, alteração comportamental. Agudamente, a uremia pode levar a lassidão, desorientação, surto psicótico, sinal de Babinsk, convulsões tônico-clônico generalizadas, disartria, asterix, coma e edema cerebral. A nível periférico ocorre polineuropatia sensitivo-motora com predomínio distal, com parestesias e paresias. O descontrole autonômico leva a descontrole da pressão arterial, da freqüência cardíaca, com hipotensão postural e hipotensão não responsiva a volume, arritmias cardíacas, morte súbita, anidrose e como já citado, gastroparesia urêmica.
A uremia agrava a insuficiência cardíaca dos nefropatas. Aliás, a principal causa e óbito nesses pacientes é a falência cardíaca. A uremia acelera a aterosclerose intra-coronariana. Além disso, 80% dos pacientes têm hipertrofia ventricular esquerda (HVE) Esta pode inclusive reverter completamente com o transplante renal. Pode haver cardiomiopatia dilatada urêmica. A baixa filtração, relacionada a uma sobrecarga de volume compromete ainda mais o coração já doente desses pacientes. Os sintomas de ICC podem estar presentes. A uremia acarreta ainda derrame pericárdico, podendo inclusive levar ao tamponamento cardíaco. As toxinas urêmicas podem levar ainda a inflamação dos folhetos pericárdicos – pericardite urêmica.
Por pelo menos 5 mecanismos ocorre alterações na fisiologia respiratória: 1) A ICC leva a edema pulmonar 2) As escórias nitrogenadas aumentam a permeabilidade dos vasos pulmonares, acarretando edema não-cardiogênico. 3) As toxinas causam miopatia urêmica diafragmática, dificultando a resposta compensatória à acidose metabólica. 4) O produto cálcio-fósforo elevado leva a depósitos de fosfato de cálcio no pulmão, calcificando o parênquima pulmonar. 5) Ocorre derrame pleural pela retenção de volume.
As alterações cutâneas relacionados à síndrome urêmica são: xerose urêmica, hiperpigmentação de áreas fotoexpostas, cabelos secos e quebradiços, prurido urêmico e descoloração da extremidade ungueal. A pele assume uma coloração amarelo-acinzentada e os compostos azotêmicos liberados pelo suor formam um pó branco, quando aquele se resseca, formando a chamada neve urêmica.
Podem ocorrer monoartrite, oligoartrite, periarterite e tenossinovite. A monoartrite pode ser séptica, pela susceptibilidade a infecções pela deficiência imunológica da uremia ou por depósitos de cristais como urato, pirofosfato de cálcio, oxalato de cálcio ou fosfato de cálcio básico. O acúmulo de ácido úrico pode ser tratado com alupurinol com doses corrigidas e deve se ter cautela com o uso de AINES. Pode-se optar pela indometacina, que tem metabolismo hepático. O duplo produto Ca2+ X P favorece a depósitos de no tecido periarticular levando a periartrite e tenossinovite. O calcitriol é importante para um adequado funcionamento muscular, razão pelo qual, a sua deficiência no hiperparatireoidismo secundário leva a miopatia urêmica. Além disso, os altos níveis de PTH levam a proteólise muscular e disfunção por acúmulo de cálcio intracelular. O paciente exibe sintomas como fraqueza da musculatura proximal.
Na uremia ocorre resistência periférica à ação da insulina associada à disfunção da ilhota beta pancreática, relacionada ao aumento do influxo de cálcio na célula, decorrente do hiperparatireoidismo. Assim, pode ocorrer intolerância à glicose ou pseudo-diabetes. Como uma parte da insulina é depurada pelo rim pela enzima insulinase, a morte de vários néfrons leva a aumento da concentração do hormônio. Como resultado, os pacientes que fazem uso de insulina exógena ou de sulfoniluréias podem ser surpreendidos por episódios de hipoglicemia. As escórias nitrogenadas inibem várias enzimas do metabolismo do colesterol, sobrevindo hipertrigliceridemia e baixo HDL. O LDL, apesar de comumente não apresentar alterações quantitativas, apresenta alterações qualitativas. A estrutura do LDL na uremia favorece a maior acúmulo na parede dos vasos. Junto ao pseudo-diabetes é um dos contribuintes mais importantes na fisiopatologia da coronariopatia urêmica. O catabolismo protéico é bastante acentuado na síndrome urêmica, levando a desnutrição protéico-calórica, que por si só é um fator de mal prognóstico. É por isso que, mesmo que seja importante reduzir a ingesta de fosfato, presente nas proteínas, por conta do hiperparatireoidismo secundário, não se deve prescrever restrições exageradas. Alguns aminoácidos elevam-se com a síndrome urêmica, como a homocisteína, a qual em altas concentrações também é fator de risco isolado para aterosclerose.
Na IRA não ocorre anemia. Na vigência de IRA, a presença de anemia denota outra causa subjacente para o distúrbio que não a deficiência de eritropoietina. A presença de OR (alterações radiológicas, hipocalcemia, hiperfosfatemia, dor óssea) só ocorre na IRC. Os pacientes crônicos toleram elevados níveis de escórias nitrogenados oligossintomáticos, o que não ocorre na IRA. A USG renal é o exame mais importante para ajudar na diferenciação. Os rins normais têm as seguintes dimensões: altura de 10 a 13 cm, largura de 5 a 7 cm, profundidade de 2,5 a 3 cm. Entretanto, nas IRC os rins têm tamanho diminuído, contrastando com os rins na IRA que podem ter tamanho normais ou até aumentados. Apenas 6 causas de IRC são exceções, pois cursam com aumento do tamanho renal – nefromegalia.
À ultrassonografia, o parênquima renal aparece hipoecogênico (preto) e a pelve renal e o tecido gorduroso adjacente apresenta-se hiperecogêncio (branco). Na Nefropatia crônica, o parênquima aparece, entretanto, mais brilhante – hiperecogêncio. É a chamada dissociação córtico-medular que ocorre na nefropatia crônica.
Nas fases mais precoces da IRC pode ocorrer HAS pela nefropatia, a qual é agravada pela retenção de sódio e água. O tratamento deve enfocar o rígido controle da HAS para níveis abaixo de 130x80mmHg. Pode-se usar iECA ou BRAs que por inibirem a síntese de Angiotensina II, diminuem o mecanismo de hiperfiltração compensatório. Em caso de proteinúria, o iECA e BRA ainda a diminuem. Além disso, deve-se tratar a doença de base. Esse assunto deverá se melhor visto no capítulo XX. Com o progredir da IRC, quando os primeiros sinais e sintomas da síndrome urêmica aprecem, pode-se lançar mão do uso da eritropoietina, da restrição do fosfato da dieta, bem como o uso de quelantes como carbonato de cálcio e ainda a reposição de cálcio e até calcitriol. É importante ainda a restrição da ingesta de sódio (100mEq/dia), água (1000-1500 ml/dia), potássio (40mEq/dia) e proteínas (1,0g/Kg/dia), devendo-se ter o cuidado para não realizar restrições exageradas. Em casos mais avançados o paciente pode necessitar de terapia de substituição renal, seja por diálise ou por transplante renal. É importante frisar que a diálise não corrige vários distúrbios da síndrome urêmica como anemia, osteodistrofia renal, hipocalcemia, hiperfosfatemia, prurido urêmico, alterações articulares, aterosclerose, dislipidemia, estado hipercatabólico e depressão imunológica. Veja na tabela algumas causas de agudização da IRC.
A Doença Renal Crônica (DRC) é um sério problema de saúde pública. Em função do crescimento de doenças como HAS e DM, aliado a uma maior expectativa de vida da população, existem estimativas que prevêem que o número de pacientes que precisarão dialisar pode dobrar nos próximos 6 anos, acarretando custos elevadíssimos. Só para se ter uma idéia, o número de pacientes no Brasil em Terapia de Substituição Renal (TSR), que inclui diálise e transplante renal, saltou de pouco mais 20 mil em 1994, para quase 60 mil em 2004.
Pacientes com HAS, DM e história familiar de DRC têm risco elevado de DRC. Têm risco médio para desenvolvimento de DRC: enfermidades sistêmicas, ITU de repetição, litíase urinária repetida, uropatias, crianças com idade menos que 5 anos, idosos com mais de 60 anos e mulheres grávidas. A creatina sérica ajustada através da equação de Cockcroff-Gault pode ser utilizada para avaliação da função renal. Veja a fórmula.
FORMULA
O uso da fórmula fornece ajustes para variáveis que interferem na produção de creatinina como idade, sexo, superfície corporal. É fundamental o cálculo do clearence em todo paciente a quem se pede creatinina sérica, uma vez que muitos pacientes já podem ter algum grau de insuficiência renal, apesar dos níveis séricos de creatinina estarem normais. Para a avaliação da população pediátrica opta-se pela equação de Schwartz e a de Counaham-Barrat.
FORMULA
Como no processo de envelhecimento a filtração glomerular (FG) diminui, pode ser difícil diferenciar a diminuição da filtração no envelhecimento da DRC do idoso. Por isso, o diagnóstico não deve ser feito exclusivamente a partir da estimativa da FG, mas também na presença de outros marcadores de doença renal como alterações do sedimento urinário e de exame de imagem.
FORMULA
A DRC é em geral sub-diagnosticada e sub-tratada. Boa parte desse problema ocorre porque muitos médicos não têm o costume de calcular o clearence de creatinina e estadiar o paciente, limitando-se a averiguar se o valor absoluto de creatina encontra-se abaixo do valor de corte do laboratório. A intervenção precoce no tratamento da IRC é uma boa estratégia para evitar que mais pacientes cheguem à diálise. Uma medida simples, mas muitas vezes esquecida é a inclusão de uma medicação anti-hipertensiva no tratamento do paciente diabético. Veja no gráfico abaixo o efeito do tratamento anti-hipertensivo sobre a evolução da nefropatia diabética, uma causa crescente de DRC no nosso meio
GRÁFICO