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Texto de Humberto Forte
O ser humano deve ser compreendido em duas dimensões básicas: sua constituição, seu funcionamento biológico(natureza) e o conjunto de experiências interpessoais, além da dua história e do contexto social no qual vive e foi formado(cultura). Essa dupla dimensão da experiência é reconhecida desde a Antiguidade, assim, Cícero(106-43 a.C.) afirmava que “pelo uso das nossas próprias mãos criamos dentro do reino da natureza uma segunda natureza para nós mesmos”. Essa segunda natureza(cultura) que o homem cria para si próprio torna;se o instrumento pelo qual ele interpreta a natureza(biologia) que ele não fez. Ou seja, a significação dos fenômenos naturais(fisiologia,doenças físias,alterações neuronais) é sempre produto de uma reinterpretação, de um “construir sentidos” â luz do contexto cultural(a segunda natureza).
Há muitos anos os estudiosos psicopatologistas têm se interessado vivamente pela relação entre os transtornos mentais e a cultura. Têm sido descrita algumas “síndromes culturalmente relacionadas”,ou seja, determinados quadros sintomáticos que ocorrem em apenas ertos grupos culturais. Tais síndromes seriam “próprias” e circunscritas a apenas alguns grupos culturais e,de alguma forma, resultariam de repertórios comportamentais específicos para se lidar com o sofrimento, característicos de cada cultura. Os diferentes modos representação do sofrimento mental que cada cultura desenvolve têm sido objeto de interesse da psicopatologia, bem como a linguagem das emoções(padrões de expressão de afetos,termos e vocábulos característicos para designar este ou aquele estado afetivo e etc.) e os processos simbólicos de “cura” e as formas de tratamento popular para o sofrimento e o desvio comportamental.
Recentemente tem crescido o interesse pela identificação da influência que variáveis socioculturais exercem sobre a freqüência e as formas de manifestação das diversas síndromes psicopatológicas. As variáveis mais estudadas são a migração e a urbanização recente, pobreza,filiação religiosa e religiosidade,assim como violência e criminalidade. Os pesquisadores tÊm investigado em que grau os transtornos mentais “clássicos”( depressão,fobias,esquizofrenia,...) variam de um contexto cultural para outro. As comparações têm sido feitas entre dois pólos básicos:
•Sociedades Industrializadas: imersas na cultura da modernidade. Nelas predominam a família nuclear, pouca influência da religião e tradição sobre os valores e as atitudes dos indivíduos, maior nível escolar, simetria de poder nas relações homem-mulher e nítida separação entre o domínio da vida pública e privada. •Sociedades “tradicionais”: imersas na cultura da “tradição”, nas quais predominam a família extensa, forte influência da religião dobre as decisões pessoais e sobre a subjetividade, baixa escolaridade formal, assimetria de poder nas relações homem- mulher e interpenetração do domínio privado e do públco.
Voltando-se para o contexto sociocultural brasileiro pode-se observar algumas síndromes relacionadas ao contexto sociocultural do País:
•Glossolalia( “ dom da fala”): observado em grupos pentecostais. Em estado de transe, de beatitude, o crente passa a falar em uma linguagem incompreensível.
•Obsessão: observado no espiritismo kardecista. Geralmente um espírito obsessor exerce ação negativa sobre o indivíduo, causando sintomas muito variados, como angustia, tristeza, depressão, fobias e etc.
•Quebranto ou mau-olhado: generalizado na cultura popular, porém amis enraizado nas populações rurais. Produzido por um indivíduo maldoso que por “irradiação maléfica” provoca sintomas como moleza, bocejamento constante, olhos lacrimejando, inapetência e tristeza.
•Espinhela caída: comum em populações rurais ou recentemente urbanizadas. A reentrância do apêndice xifóide,segundo a crença popular, produz sintomatologia multiforme, mas mais freqüentemente vômitos, astenia,estado de fraqueza e apatia generalizada.
Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos Mentais - Paulo Dalgalarrondo - 2000