|
|
(45 edições intermediárias não estão sendo exibidas.) |
Linha 1: |
Linha 1: |
- | '''Texto de Raimundo Luiz da Silveira Neto'''
| |
| | | |
- | '''Insuficiência Renal Crônica'''
| |
- |
| |
- | ----
| |
- |
| |
- | Os rins desempenham uma série de funções no organismo: eliminam as toxinas advindas do metabolismo, regulam as concentrações dos eletrólitos, o volume extracelular, o pH sanguíneo e a pressão arterial. Os rins têm ainda importante função endócrina, sendo responsáveis pela síntese da eritropoietina e pela síntese da forma ativada da vitamina D. A insuficiência renal crônica (IRC) é a perda lenta, progressiva e irreversível dessas funções.
| |
- |
| |
- |
| |
- | == Fisiopatologia ==
| |
- |
| |
- | A IRC é insidiosa. Com uma perda de até 50% da função renal, os pacientes podem não exibir quaisquer sintomas. Isso ocorre porque os néfrons têm uma enorme reserva funcional, ou seja, os rins têm maior potencial de filtração que o mínimo necessário para a homeostase. Basta lembrar que é possível viver com um único rim.
| |
- | Não bastasse a grande reserva funcional, mais uma propriedade do néfron favorece a pobreza de sintomas no início da doença: a sua capacidade de adaptação. Os néfrons sobreviventes passam a exercer as atividades dos néfrons perdidos. Não é exagero dizer que, quando vários néfrons morrem, os remanescentes passam a “dar plantão” e “fazer hora extra” - uma alusão ao trabalho a mais que supre as funções dos néfrons perdidos.
| |
- |
| |
- | ==='''<center>Mecanismo de Adaptação dos Néfrons</center>''' ===
| |
- | '''<center>Como ocorrem essas adaptações intra-renais?</center>'''
| |
- |
| |
- | Os néfrons sobreviventes passam a filtrar mais, pois se aumenta a pressão de filtração. Isso ocorre provavelmente porque ocorre uma vasodilatação da arteríola aferente decorrente da maior produção de prostaglandinas e vasoconstricção da arteríola eferente decorrente da ação da angiotensina II. Veja a figura:
| |
- |
| |
- | FIGURA 01
| |
- |
| |
- | O preço para se manter a homeostase é um demasiado trabalho extra aos néfrons remanescentes, e isso acaba sendo prejudicial. Para que esse néfron filtre mais ocorre aumento da pressão hidráulica intraglomerular. As delicadas paredes glomerulares não resistem a essas pressões de cisalhamento e vários fenômenos de natureza inflamatória passam a ocorrer. Outros mecanismos contribuem para maior estresse aos néfrons remanescentes: hipertrofia glomerular, formação de trombos intraglomerulares, proliferação exagerada de células glomerulares e matriz mesangial, deposição glomerular de lipídios, estiramento das células endoteliais e mesangiais, lesão dos podócitos, deposição de material protéico subendotelial, inflamação renal, dentre outros. Com isso, mais néfrons são destruídos e assim, ocorre maior sobrecarga hemodinâmica. Esse círculo vicioso agrava a perda do parênquima renal. Cada vez mais, sobra trabalho e falta néfron!
| |
- |
| |
- | FIGURA 02
| |
- |
| |
- | À medida que mais e mais néfrons são perdidos, pequenos sinais e sintomas podem sobrevir. Quando a função renal encontra-se em torno de 30% pode ocorrer edema de membros inferiores, hipertensão arterial, edema periorbitário, anemia, entre outros. Como a perda de função renal é irreversível e progressiva, inexoravelmente, mais néfrons serão perdidos e mesmo a “dupla jornada de trabalho” dos néfrons remanescentes não será suficiente para realizar uma adequada filtração. O paciente desenvolverá mais sinais que comporão a chamada síndrome urêmica. Os rins evoluirão para um estado de doença Renal em Fase Terminal (DRFT) com níveis de taxa de filtração glomerular (TFG) menores que 15% do normal.
| |
- | O estágio de DRFT é alcançado em um período variável de 3 a 20 anos em média, mas duas situações (a glomerulonefrite rapidamente progressiva e a necrose cortical aguda) podem levar a DRFT em curto período.
| |
- |
| |
- | == Estadiamento ==
| |
- | <center>
| |
- | <small> Tab. 01 - Estadiamento da DRC </small>
| |
- | {| border=1
| |
- | |-----
| |
- | | '''Estágio''' || '''Filtração Glomerular (ml/min)''' || '''Grau de Insuficiência Renal'''
| |
- | |-----
| |
- | | 0 || >90 || Grupos de risco para DRC* com
| |
- | Ausência de Lesão Renal
| |
- | |-----
| |
- | | 1 || >90 || Lesão Renal com Função Renal Normal
| |
- | |-----
| |
- | | 2 || 60-89 || Insuficiência Renal Leve ou Funcional
| |
- | |-----
| |
- | | 3 || 30-59 || Insuficiência Renal Laboratorial ou Moderada
| |
- | |-----
| |
- | | 4 || 15-29 || Insuficiência Renal Severa ou Clínica
| |
- | |-----
| |
- | | 5 || <15 || Insuficiência Renal Terminal ou Dialítica
| |
- | |-----
| |
- | |}
| |
- |
| |
- | <small>* Grupos de risco para DRC: HAS, DM, parentes de paciente com DM, HAS e DRC. </small>
| |
- | </center>
| |
- |
| |
- | == Etiologia ==
| |
- | As mais importantes causas de IRC são hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus e glomerulonefrites. Nos EUA, a causa mais importante é a DM (43,7%), seguida pela HAS (26,3%) e glomerulonefrites (9,4%) – dados de 2002. No Brasil, a HAS parece ser a principal causa. Acompanhe na tabela a evolução das principais causas de IRC no Brasil ao longo dos anos.
| |
- |
| |
- |
| |
- | <center>
| |
- | <small> Tab. 02 – Evolução das principais causas de IRC no Brasil </small>
| |
- | {| border=1
| |
- | |-----
| |
- | | '''Diagnóstico''' || '''1987''' || '''1997''' || '''2005'''
| |
- | |-----
| |
- | | Glomerulonefrite Crônica || 36,5% || 27,5% || 13,0%
| |
- | |-----
| |
- | | NIC/PNC || 16,5% || 11,0% || 9,0%
| |
- | |-----
| |
- | |'''Nefroesclerose''' || 10,8% || 16,8% || '''27,1%'''
| |
- | |-----
| |
- | | '''Diabetes Mellitus''' || 8,1% || 13,0% || '''22,3%'''
| |
- | |-----
| |
- | | D. Renal Policística || 6,7% || 3,0% || 5,4%
| |
- | |-----
| |
- | | Nefropatia lúpica || 4,7% || 1,3% || 2,1%
| |
- | |-----
| |
- | | Outros || 1,7% || 4,6% || 12,1%
| |
- | |-----
| |
- | | Indeterminado || 15,0% || 22,8% || 9,0%
| |
- | |-----
| |
- | |}
| |
- | <small>Fonte: Sabbaga E. 1987; Sec. Saúde SP, 1997; Romão Jr JE, 2004; </small>
| |
- | </center>
| |
- |
| |
- | == Síndrome Urêmica ==
| |
- |
| |
- | A síndrome urêmica é o conjunto de sinais e sintomas que começam a surgir quando a FG está < 30 ml/min. Ela decorre de dois eventos: '''a) acúmulo de várias toxinas que deixam de ser excretadas''' e '''b) perda da função endócrina renal''' (diminuição da síntese de eritropoietina e de calcitriol).
| |
- | Dos produtos do catabolismo protéico acumulados, surgem várias manifestações clínicas. Entre as escórias nitrogenadas destacam-se uréia, guanidinas, ácido guanidinosuccínico, sulfato de inoxidil, miosinositol, β-2-microglobulina, aminas alifáticas e poliaminas. Apesar de muitas vezes ser imputada como responsável pela maioria dos sintomas urêmicos, somente acima de 250mg/dL, a uréia isoladamente é capaz de gerar sintomas. Provavelmente nenhuma toxina isolada é capaz de gerar todos os sintomas da síndrome urêmica.
| |
- |
| |
- | ===Distúrbios decorrente do acúmulo de toxinas ===
| |
- | ----
| |
- |
| |
- |
| |
- | ==== Hipervolemia e Hiponatremia ====
| |
- | O rim normal consegue variar a excreção de água e eletrólitos de acordo com as necessidades corpóreas. Na DRC, como ocorre menor filtração, acumula-se sódio. Para tentar evitar esse processo, cada néfron remanescente adapta-se aumentando a sua fração excretória de sódio (FENa). Resumidamente, pode-se dizer que cada unidade filtradora excretará mais sódio que normalmente está habituado a excretar. De tal maneira é essa adaptação para livrar-se do excesso, que o rim perde sua capacidade de desadaptação. Os néfrons não conseguem mais voltar a excretar as antes habituais menores quantidades de sódio. Tampouco, com o progredir da perda de néfrons, a adaptação consegue ser suficiente para garantir uma adequada homeostase desse íon. Como resultado, nem os néfrons conseguem excretar o excesso de sódio, nem são capazes de retê-lo em situações em que seja necessário conservá-lo. Veja a figura:
| |
- |
| |
- | FIGURA 03
| |
- |
| |
- | Dessa maneira, se o paciente ingere uma quantidade maior de sal, ocorre retenção, levando à hipervolemia e suas conseqüências: edema em face, membros inferiores, ascite, derrame pleural e pericárdio, HAS, EAP e etc. Caso ele ingira pouco, a adaptação que proporcionou aumentar a FENa faz com que boa parte do sódio seja perdida na urina e o paciente apresente hipovolemia.
| |
- | Apesar de ocorrer uma tendência a retenção de sódio, na verdade ocorre '''hiponatremia''' e não hipernatremia na DRC. Por quê? Isso ocorre porque, com a baixa filtração, o sódio é retido; mas, com o sódio, a água também é absorvida. Ela acaba diluindo o sódio, assim, ocorre '''hipervolemia com hiponatremia dilucional, apesar de estar ocorrendo retenção de ambos.'''
| |
- | ====Outros distúrbios eletrolíticos ====
| |
- | Apesar de aumentar a fração de excreção dos outros eletrólitos que estejam sendo retidos, como já redundantemente explanado, com o progredir da DRC, a adaptação torna-se insuficiente e eles terminam por acumular-se. Sendo assim, ocorre hipercalemia, hipermagnesemia e hiperfosfatemia. Com o cálcio, entretanto, ocorre o oposto – hipocalcemia. Esse mecanismo será discutido adiante, na área destinada à Osteodistrofia Renal (OR). Adianta-se apenas o fato de o cálcio permanecer predominantemente ligado à albumina, que obviamente, não é filtrada. Apenas uma pequena quantidade de cálcio permanece na forma livre, podendo então sofrer influência direta do controle eletrolítico exercido pelos rins.
| |
- |
| |
- | ====Acidose ====
| |
- | A maior parte dos íons hidrogênio (2/3) é excretada ligada à amônia produzida no túbulo renal. Para cada H+ excretado, um íon bicarbonato é absorvido. Na IRC, o rim produz menos amônia e o H+ deixa de ser excretado e conseqüentemente o bicarbonato deixa de ser absorvido. Na falta de bicarbonato, o rim passa a aumentar a absorção de cloretos para compensar a carência de cargas negativas. Nesse momento instala-se uma acidose hiperclorêmica. Com o progredir da perda de função renal (FG ~ 5-10 ml/min), vários ânions deixam de ser excretados, como o sulfato (proveniente do metabolismo das proteínas), urato, fosfato, lactato, acetato e etc. Assim a acidose passa a ser com anion gap elevado.
| |
- | ====Distúrbios Hematológicos ====
| |
- | O ácido guanidinosuccínico inibe a atividade plaquetária induzida pelo ADP, predispondo a sangramentos em vários locais. A anemia contribuiu ainda mais para o distúrbio hemorrágico, uma vez que as hemácias favorecem a interação das plaquetas com o endotélio lesado.
| |
- | As toxinas ainda deprimem a função neutrofílica, favorecendo o surgimento de infecções bacterianas e fúngicas que potencialmente podem evoluir para sepse grave. Também ocorre discreta linfopenia e disfunção linfocitária. A imunidade humoral está deprimida, notadamente ao combate do HBV e ao vírus da influenza.
| |
- | A anemia, por ter mecanismo muito mais complexo será tratada em um tópico a parte.
| |
- |
| |
- | ===Distúrbios decorrente da perda de função endócrina ===
| |
- | ----
| |
- |
| |
- |
| |
- | ==== Anemia da Doença Renal Crônica ====
| |
- | A anemia é um dos principais manifestações da doença renal e é responsável por uma série de sintomas como fadigabilidade, alterações neuro-psiquiáticas, astenia, indisposição física e mental, cefaléia, déficit cognitivo, anorexia, insônia, tendência a sangramento, está associada à maior mortalidade cardiovascular, hipertrofia ventricular esquerda, insuficiência cardíaca e má qualidade de vida. Ela instala-se à medida que a filtração glomerular cai abaixo de 20-30 ml/min/1,73m2.
| |
- |
| |
- | =====Fisiopatologia da Anemia da Doença Renal Crônica =====
| |
- | ======Deficiência relativa de Eritropoietina ======
| |
- | Sob estímulo hipóxico, no rim, mais especificamente nos capilares peritubulares e em fibroblastos presentes no interstício renal, é produzida a maior parte da eritropoietina. Esse hormônio promove maior síntese de hemoglobina na medula óssea, por inibir a apoptose de células progenitoras da linhagem eritróide. A progressão da insuficiência concorre '''para a menor síntese de eritropoietina''' e assim, a medula produz menos eritrócitos. Veja na figura o esquema da participação do rim na síntese de hemoglobina.
| |
- |
| |
- | Figura 04
| |
- |
| |
- | ======Deficiência de ferro ======
| |
- |
| |
- | A elaboração do heme depende ainda de outros fatores. A adequada síntese requer: '''a) estoques adequados de ferro''', '''b) mobilização do ferro''' dos estoques, presentes no sistema reticuloendotelial, e transporte adequado do mesmo à medula pela transferrina. Não bastasse o precário estímulo para a síntese de hemoglobina, decorrente da eritropoietinopenia relativa, '''o paciente urêmico dispõem de poucas reservas''' para a já tão prejudicada síntese. Por quê?
| |
- | A) Estoque inadequados
| |
- | 1 - A anorexia comum desses pacientes leva a menor ingestão alimentar, e daí, a diminuição das reservas de ferro. Outro problema: o trato gastrointestinal desses pacientes pode ainda ter uma menor capacidade de absorver ferro.
| |
- | 2 - As toxinas urêmicas podem ainda lesar a mucosa gastrointestinal. Além disso, as toxinas urêmicas promovem inibição plaquetária. Essa combinação nociva (disfunção plaquetária + lesão da mucosa) predispõe ao sangramento, notadamente no trato gastrointestinal, levando a perda crônica de ferro. O resultado é um desastroso balanço negativo: pouco ferro é absorvido e muito ferro é perdido.
| |
- | B) Má mobilização e transporte inadequado
| |
- | 1- Em doenças inflamatórias como o LES, por exemplo, ainda ocorre uma “dificuldade” para mobilizar as reservas – o que é chamado de anemia da doença crônica. Nessa situação, por causa da inflamação crônica, o organismo pode até dispor de bons estoques de ferro (ferritina elevada), mas este não chega à medula (a saturação de transferrina é baixa). O ferro fica “aprisionado” na ferritina e não fica disponível à medula. Há uma '''deficiência funcional de ferro'''.
| |
- |
| |
- | A anemia da doença crônica decorre de outros mecanismos: redução da meia-vida das hemácias, redução da produção renal de eritropoietina e menor resposta dos precursores eritróides à ação da eritropoietina.
| |
- | No nefropata, o paratormônio (PTH) está aumentado devido ao hiperparatireoidismo secundário (esse tema será mais bem dissecado no item OR. Por três mecanismos principais o PTH é considerado um dos principais vilões no desequilíbrio da homeostase hematológica.
| |
- |
| |
- | ======Fibrose Óssea ======
| |
- | '''1)''' Ele promove fibrose óssea: a fibrose dos ossos, principalmente dos ossos chatos, terá como conseqüência a diminuição do compartimento onde as células vermelhas seriam produzidas.
| |
- |
| |
- | '''2)''' Inibe o efeito da eritropoietina na medula óssea.
| |
- |
| |
- | ======Diminuição da meia-vida das hemácias ======
| |
- | '''3)''' Diminui a meia-vida das hemácias, a qual cai de aproximadamente 120 dias para cerca de 65-70 dias (outras toxinas também participam desse processo)
| |
- |
| |
- | ======Outros ======
| |
- |
| |
- | ==== Osteodistrofia Renal ====
| |