Os engolidores de fogo

“Primeiro você me azucrina, me entorta a cabeça, me bota na boca um gosto amargo de fel”. A frase é de uma música, sucesso dos anos 1970, mas retrata algo que incomoda muita gente, as pessoas que padecem da doença do refluxo. Essa enfermidade é comum, pois afeta de 10% a 20% da população. Frequentemente, alguém reclama por aí: eu tenho refluxo! Mas, o que é mesmo isso? Em geral, todos nós temos refluxo quando o conteúdo líquido presente no estômago reflui para o esôfago, num trajeto contrário ao habitual. Isso pode acontecer várias vezes ao dia sem causar nenhum dano ou qualquer incômodo.

O refluxo gastresofágico possui conteúdo geralmente ácido, próprio do estômago, mas também pode trazer conteúdo de gás e bile, dando trela ao “gosto amargo de fel” quando é intenso e atinge regiões mais altas do trato digestivo como a garganta, chegando a provocar tosse. Nesse nível, as pessoas experimentam várias sensações desagradáveis, sendo a mais comum a azia, sensação de queimação que sobe do estômago goela acima, parecendo que o indivíduo engoliu fogo. Quando não tratada, pode evoluir para outras complicações mais sérias.

O ser humano está biologicamente preparado para evitar os malefícios do refluxo. Dispomos de especial estrutura muscular na junção entre o esôfago e o estômago para prevenir o retorno para o primeiro do conteúdo líquido e gasoso encontrado no segundo. A primeira dessas estruturas é um esfíncter, que permanece fechado na maior parte do tempo, uma espécie de anel muscular que fecha a comunicação direta entre esôfago e estômago, mas que relaxa normalmente quando engolimos uma porção de alimento, permitindo assim que a digestão possa ocorrer no estômago.

Mas só o esfíncter não garante totalmente a perfeita vedação dessa abertura desejada nos momentos de jejum. O diafragma, músculo que separa o tórax do abdômen, também participa dessa barreira antirrefluxo. O diafragma é mais conhecido por ajudar a respiração, movendo para baixo os pulmões que se enchem de ar na inspiração. Uma parte desse músculo, chamada de diafragma crural, abraça o esôfago dando-lhe um arrodeio logo acima do estômago, reforçando a função contrátil do esfíncter esofagiano em sua tarefa de conter o refluxo. Se essa barreira muscular não funciona, a doença do refluxo pode aparecer.

Por dominarem o diafragma com peculiar destreza, os cantores de ópera sujeitam esse músculo a esforço extremo, alcançando assim alto desempenho artístico. Como tudo demais é veneno, pesquisadores europeus já demonstraram que cantores líricos e músicos de instrumentos de sopro, como os flautistas e clarinetistas, apresentam mais sintomas de refluxo gastresofágico que indivíduos com outras ocupações. Por outro lado, professores de canto, menos exigidos na qualidade de voz em comparação aos cantores líricos nas apresentações para grandes públicos, expõem o diafragma a menor esforço e, por causa disso, apresentam menos sintomas de refluxo. Isso ilustra como o diafragma pode fazer parte da barreira antirrefluxo e nos leva a crer que o recrutamento rotineiro e exaustivo dele pode dificultar seu papel na proteção do esôfago.

Sabedores disso, um grupo de pesquisadores cearenses liderado pelo professor Miguel Souza, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC), decidiu provar ser possível obter melhora dos sintomas do refluxo por meio de exercícios programados para treinar esse músculo na medida certa. Eles submeteram um grupo de pacientes diagnosticados com a doença a uma série de exercícios diafragmáticos inspiratórios específicos. Durante o treinamento, quase tudo era controlado: as pressões monitoradas, a duração registrada, a intensidade adequada, as repetições previstas, mas não a sonoridade. Razão porque, em determinados momentos, os vizinhos do professor Miguel escutavam sons vindos da sala ao lado que, aos desavisados, pareciam vir de uma suposta seleção para figurantes de um filme de Tarzan, o rei das selvas.

Os resultados foram animadores. Após o treinamento, os pacientes melhoraram em todos os parâmetros técnicos na avaliação da barreira antirrefluxo. Mais importante, os escores da sensação de azia e de regurgitação do conteúdo gástrico para o esôfago também foram menores, sugerindo assim que o treinamento realmente melhora a eficiência mecânica diafragmática. O estudo foi publicado na revista científica da Sociedade de Fisiologia dos Estados Unidos, um dos mais respeitados periódicos científicos nessa área.

Atualmente, a doença do refluxo pode ser tratada com medicamentos, mas oxalá esse estudo proporcione opção adicional para ajudar os que padecem dessa doença; será possível oferecer um protocolo de fisioterapia como forma de “dar um grau” na função muscular da barreira antirrefluxo? Isso poderia corrigir a provável atrofia do diafragma, que pode vir a ser uma das causas do enfraquecimento da barreira antirrefluxo, mas essas questões ainda estão por ser desvendadas. Aguardemos as cenas dos próximos capítulos. E, já que falamos no Tarzan, não sabemos se ele sofria ou não de refluxo em seu ofício, mas quem sabe essa contribuição cearense seja a primeira evidência científica que valide o famoso ditado “quem canta seus males espanta”.

Autor: Pedro Magalhães

Fonte: Jornal O Povo (http://www.opovo.com.br/app/colunas/aquitemciencia/2014/09/27/noticiaaquitemciencia,3320662/os-engolidores-de-fogo.shtml)

Posted in Links Interessantes | Leave a comment

Um alien dentro de nós

No filme de Ridley Scott, uma criatura cheia de ácido irrompe de dentro do abdômen de um dos personagens. O bicho se dava bem lá dentro, pois, em se tratando de acidez, o estômago humano parece uma bateria de carro. Suas paredes internas estão sempre repletas de ácido clorídrico extremamente corrosivo. No século passado, quando uma pessoa sofria de dores estomacais crônicas, dizia-se que esse desconforto era fruto de um aumento dessa acidez causado pelos suspeitos usuais, o álcool, o cigarro e as preocupações – o famoso estresse. Ninguém imaginava que algum organismo conseguisse sobreviver nesse ambiente inóspito e tivesse alguma relação com os problemas gástricos mais comuns.

Pois, em 1983, os australianos Barry Marshall e Robin Warren mostraram que existe pelo menos uma bactéria que se dá bem em nosso estômago, a Helicobacter pylori, uma danadinha em forma de hélice – daí seu nome -, encontrada na barriga de pelo menos metade da população do planeta. Os cientistas australianos demonstraram que a H. pylori é a principal responsável pela gastrite e pode levar ao surgimento de úlceras. Ainda pior, pode também levar ao câncer de estômago. A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera a H. pylori um risco para o estômago no mesmo nível que o cigarro para o pulmão. Por seu trabalho, Marshall e Warren ganharam o prêmio Nobel de medicina em 2005.

Antes dessas descobertas, a gastrite e a úlcera gástrica eram tratadas com antiácidos, muito deles contendo metais pesados, como o bismuto e o antimônio. Hoje se sabe que a eficácia desses medicamentos decorre de serem tóxicos a H. pylori . Mas, o melhor tratamento consiste mesmo no uso de antibióticos que eliminem a presença da bactéria no estômago.

Como seria de se esperar, a H. pylori é mais prevalente onde as condições sanitárias não são ideais. Além disso, a bactéria se apresenta em vários tipos genéticos, sendo alguns mais prejudicais que outros. É importante saber diagnosticar com precisão se o paciente está realmente infectado e qual é o tipo de H. pylori que causa seus problemas gástricos. Isso é ainda mais relevante quando se trata de crianças.

A professora Lúcia Libanêz Bessa, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC), e seu grupo de pesquisa, com a colaboração da professora Dulciene de Queiroz, da Universidade Federal de Minas Gerais, vêm estudando sistematicamente a presença da H. pylori em nossas comunidades e já sabem que a bactéria é encontrada em cerca de 80% da população de Fortaleza, tanto nos adultos que procuram o médico por apresentar sintomas como nos indivíduos assintomáticos. Além disso, a bactéria também é encontrada com muita frequência em crianças. Uma análise do tipo genético dessas bactérias, feita pelo grupo, mostrou que elas pertencem às cepas mais virulentas, que estão associadas com doenças como a úlcera péptica e o câncer gástrico.

O método mais usual de testar a presença e a atuação da bactéria em um paciente é a endoscopia. Uma fibra óptica é introduzida através da boca no estômago do paciente, produzindo imagens das paredes internas e possibilitando a retirada de material para biópsia. Quem já fez esse exame, sabe bem que ele não é dos mais agradáveis. O grupo da professora Lúcia está usando um método bem mais simpático para uso com crianças de nossas comunidades. A técnica tem também a vantagem de não demandar um equipamento impraticável de ser levado aos locais onde os pesquisadores querem obter suas amostras. Trata-se do Enteroteste, uma técnica semelhante a que já é usada para detectar infestação de vermes. O paciente ingere uma cápsula gelatinosa parecida com aquelas de complemento alimentar. A cápsula está acoplada a um fio que vai junto. Depois de 40 minutos, o fio é puxado trazendo consigo uma amostra do suco gástrico. A partir desse material é realizada a cultura e a extração do DNA da H. pylori, possibilitando o sequenciamento e a identificação de seu tipo genético.

Esse estudo é importante para orientar as políticas de saúde pública na prevenção e no tratamento das doenças associadas a H. pylori. Conhecer melhor a presença e os efeitos da H. pylori em nosso meio é fundamental e essa é a meta do grupo de pesquisa da UFC que já está nesse trabalho há vários anos.

H. pylori boa é H. pylori morta – será mesmo?

A H. pylori já estava presente no estômago de nossos antepassados que saíram da África para conquistar o planeta há mais de 100.000 anos. Sendo uma companheira tão antiga de nossa espécie, surge a questão: por que não foi eliminada pela seleção natural? Provavelmente, porque ela não é tão maléfica quanto se diz. Se a H. pylori causasse grande mortalidade antes do fim do período de reprodução de seus hospedeiros, certamente, já teria sido erradicada pela seleção natural. Como isso não se deu, podemos suspeitar de algum tipo de co-evolução entre elas e nós.

O médico americano Martin Blaser sugere que a H. pylori talvez não seja apenas vilã. Como sabemos hoje, algumas bactérias são fundamentais para nossa sobrevivência, ajudando na digestão, reforçando o sistema imunológico e prevenindo outras infecções mais graves. Quem sabe, a H. pylori também tem alguma função benéfica em nossos organismos. Se esse for o caso, sua erradicação total com o uso de antibióticos pode acabar causando problemas inesperados. É consenso, hoje em dia, que o excesso de antibióticos pode estar contribuindo para o aumento na incidência de doenças como a asma e a obesidade. Aliás, basta lembrar que os antibióticos são usados pelos criadores de frangos não para eliminar doenças, mas para engordá-los mais rapidamente.

A H. pylori é, comprovadamente, perigosa, mas, antes de tentar eliminá-la por completo, vale a pena compreender melhor seu papel em nossos corpos. Nesse aspecto, pesquisas como essas desenvolvidas na UFC podem contribuir significativamente na busca das melhores ações relativas a essas infecções e suas consequências.

“Conhecer melhor os efeitos da H. pylori em nosso meio é fundamental e essa é a meta do grupo de pesquisa da UFC”

Autor: José Evangelista

Fonte: Jornal O Povo (http://www.opovo.com.br/app/colunas/aquitemciencia/2014/09/13/noticiaaquitemciencia,3313418/um-alien-dentro-de-nos.shtml)

Posted in Links Interessantes | Leave a comment

Criança não é adulto em miniatura

Foi pensando assim que a professora Helena Lutéscia Coelho, criadora do grupo de pesquisa Melhores Medicamentos para Crianças (MEMECRI), na Universidade Federal do Ceará (UFC), deu início a um trabalho dedicado a melhorar a forma como os remédios são usados em pacientes que vão de neonatos a adolescentes.

Essa ainda é uma área pouco estudada. Basta ver que só em 2007 a Organização Mundial de Saúde (OMS) lembrou-se de elaborar uma lista de remédios essenciais para crianças. Antes, existia apenas uma lista para adultos. No Brasil, até hoje, ainda não há uma lista desse tipo.

São várias as razões para essa demora. Para começar, o número de estudos clínicos específicos é pequeno. Testes com crianças são mais complicados e envolvem aspectos éticos limitantes. Soma-se a isso o desinteresse da indústria farmacêutica em atuar nessa linha de produção considerando que existe um mercado relativamente pequeno e com altos custos de pesquisa e desenvolvimento.

O resultado desse quadro é o costume de se usar em crianças os mesmos remédios usados em adultos, modificando-se, apenas, a dosagem. E mesmo assim, essa adequação é feita de forma precária, sem considerar que organismos de crianças e adultos são bastante diferentes em quase todos os aspectos biológicos.

O uso inadequado de drogas não testadas especificamente em crianças soma-se ao uso de excipientes também impróprios na produção desses medicamentos. Vários deles contêm substâncias potencialmente nocivas quando receitadas para uso até em recém-nascidos, como o etanol, o benzoato de sódio e o propilenoglicol.

Os países mais desenvolvidos já começaram a procura de normas para a pesquisa, o desenvolvimento e o registro de novos medicamentos específicos para o uso infantil. No Brasil, como foi observado pela professora Helena Lutéscia, esse tipo de ação está apenas começando. O Ministério da Saúde tem, há vários anos, uma Relação de Medicamentos Essenciais (Rename), mas, essa lista ainda não tem uma relação específica de medicamentos infantis.

Por outro lado, a prescrição e a aplicação de remédios em crianças ainda precisam melhorar significativamente, no Brasil, mesmo nos hospitais exclusivamente pediátricos. Em muitas ocasiões, o grupo da pesquisadora constatou a inexistência de condições adequadas para a manipulação de remédios para os pacientes de pequena idade. É frequente o uso de dosagens incorretas, contaminação por tratamento inadequado e alta taxa de descontinuidade no uso do remédio, depois que as crianças e seus responsáveis deixam o hospital ou a clínica.

Uma linha interessante do trabalho do grupo da professora Helena Lutéscia tenta evitar essa baixa na adesão criando uma relação com os responsáveis pelas crianças. Além disso, o grupo desenvolveu um produto que pode ser usado no momento da administração do medicamento, facilitando a aceitação pelas crianças. Remédios essenciais, como o Captopril e a Furosemida, têm gosto muito ruim e costumam ser recusados pelas crianças. Principalmente até seis anos de idade, o fator gosto é determinante para essa aceitação sem maiores problemas. Esse produto é um veículo útil para dissolver medicamentos sólidos que não existem na dose apropriada à criança ou são difíceis de engolir. Foi criado pelo professor Said Fonseca, do Laboratório de Farmacotécnica da UFC. Pode ter sabor neutro ou conter flavorizantes com gosto de menta, morango ou cereja.

O veículo foi testado, inicialmente, em crianças e adultos saudáveis e voluntários, entre eles, os próprios pesquisadores. Todo o estudo foi acompanhado e aprovado pelo Comitê de Ética da UFC. Na fase seguinte, os testes foram feitos com pacientes infantis do Hospital de Messejana, com a participação constante dos responsáveis por elas. Para facilitar a resposta desses pacientes na apreciação do uso do veículo junto com o medicamento, foi usada uma Escala Hedônica que vai de 1 a 7, em termos crescentes de aceitação. Os resultados mostraram uma boa aceitação dos medicamentos preparados com o veículo, mesmo sem a adição de flavorizantes.

O trabalho do grupo da professora Helena Lutéscia já resultou em publicações em revistas internacionais e está contribuindo para o estabelecimento de novos protocolos na produção e uso de remédios para uso exclusivamente infantil em nosso País.

DANDO OS DEVIDOS CRÉDITOS
Na coluna passada, lembramos o trabalho do professor João Ramos e sua equipe de fazedores de chuva e mostramos a foto acima com parte do grupo junto ao avião usado na nucleação de nuvens. Por um feliz acaso, essa foto chegou a nós pelas mãos da pesquisadora cujo trabalho é assunto da coluna de hoje, a professora Helena Lutéscia, da UFC. Dessa forma, ficamos sabendo que o pai da professora, senhor Bráulio Leite Coelho, fez parte da equipe do professor João Ramos e aparece em pé, na extremidade esquerda da foto. A foto original foi restaurada por Normania Siebra.

Autor: José Evangelista Moreira

Fonte: O Povo (http://www.opovo.com.br/app/colunas/aquitemciencia/2014/08/30/noticiaaquitemciencia,3305536/crianca-nao-e-adulto-em-miniatura.shtml)

Posted in Links Interessantes | Leave a comment

Fazedores de chuva

No início, quando queriam chamar a chuva, os homens tocavam tambores, lançavam fumaça ao céu ou faziam danças rituais. Depois, vieram as orações e as procissões. Com o advento da era da ciência, passaram a usar métodos potencialmente mais eficientes. Os balões e os aviões possibilitaram chegar às nuvens para atuar diretamente dentro delas e tentar provocar a precipitação da chuva.

Nos anos 1940, nos Estados Unidos, o meteorologista Vincent Schaefer e o químico Irving Langmuir, ganhador do Nobel, iniciaram pesquisas sérias sobre nucleação artificial de nuvens. Um colega de Schaefer, o físico Bernard Vonnegut, mostrou que o iodeto de prata tinha grande potencial para fazer condensar gotas em nuvens frias, pois tem uma estrutura molecular muito parecida com a do gelo. Bernard era irmão de Kurt Vonnegut, romancista que escreveu o livro Gelo-Nove, onde usa algumas ideias inspiradas no trabalho do irmão físico.

No Ceará dos anos 1950, o médico João Ramos Pereira da Costa, motivado pela frequência de nossas secas, começou um trabalho nessa direção, inicialmente usando gelo seco para semear as nuvens. Nessa época, formou-se uma equipe que incluía, além de João Ramos, engenheiros, agrônomos e técnicos. Naquele tempo, o Ceará ainda não tinha meteorologistas profissionais.

No início dos anos 1960, depois de tentar gelo seco e iodeto de prata, João Ramos decidiu que o cloreto de sódio (sal de cozinha) era a melhor aposta para nuclear nuvens “quentes”, como as que temos no Nordeste. A técnica era chamada de “nucleação higroscópica de nuvens”. Os cristais de sal agregam as moléculas de água e formam gotas que podem crescer e se precipitar. Nas regiões frias há formação e precipitação de gelo, o que não acontece nas nuvens nordestinas.

Começaram, então, os anos dourados da nucleação de nuvens no Ceará. A Força Aérea Brasileira (FAB) emprestou aviões para os trabalhos iniciais de nucleação e, em 1961, a então Universidade do Ceará criou o Instituto de Meteorologia, sendo João Ramos seu primeiro diretor. Na época, todos acreditavam no sucesso da técnica e os fazendeiros pressionavam seus políticos para conseguir alguma passagem do avião da chuva sobre suas propriedades. Em 1971, foi criada a Funceme, na época chamada de Fundação Cearense de Meteorologia, e João Ramos foi o primeiro superintendente.

Apesar do aparente sucesso das iniciativas dos fazedores de chuva em todo o mundo, a partir dos anos 1980, a ideia de provocar chuvas artificiais passou a enfrentar um grande descrédito entre os meteorologistas. Para começar, é muito difícil, talvez até impossível, saber se uma chuva que caiu depois de uma sessão de nucleação das nuvens, foi provocada pela intervenção ou se foi natural, isto é, cairia de qualquer modo.

Durante alguns anos, a técnica foi praticamente abandonada por falta de financiamento dos órgãos do governo. Entretanto, de forma um tanto surpreendente, o trabalho de nucleação de nuvens vem passando, ultimamente, por um ressurgimento.

Na China, é uma técnica é muito acreditada, tendo sido utilizada para forçar precipitações nos meses anteriores às Olimpíadas de 2008, garantindo céu claro durante o evento em agosto.

Nos Estados Unidos, o procedimento é usado por pequenas e médias empresas que se especializaram em usá-lo para suprimir geadas. Acredita-se que, se a nucleação causar um aumento de mais de 5% na precipitação das chuvas, o processo já é economicamente justificável. É claro que para semear nuvens é necessário que elas já existam. Segundo os especialistas, a melhor ocasião para usar a técnica não é durante as secas, mas, quando o regime de chuvas está na média e se quer aumentar esse volume para ter mais água armazenada nos reservatórios.

Como diz um americano que trabalha em uma empresa de nucleação na Califórnia: “uma nuvem é como uma esponja de pia, o que a gente faz é espremer para que a água escorra”.

Acredita-se que, se a nucleação causar um aumento de mais de 5% na precipitação das chuvas, o processo já é economicamente justificável

Dando um banho nos paulistas
“O prefeito e seus convidados ilustres estavam na pista do aeroporto para ver uma demonstração da nucleação. Era um campo modesto com um pequeno galpão que servia de hangar. Havia uma nuvem escura sobre o campo e nós entramos nela com o avião e o pessoal começou a despejar a solução de sal. Na segunda vez que entramos na nuvem já apareceram umas gotinhas no para-brisa. Quando saímos da nuvem depois da terceira passagem, desabou um aguaceiro sobre as autoridades que tiveram de correr para se abrigar no galpão”.

O depoimento é de um oficial da FAB que pilotou um avião com a equipe do médico João Ramos no interior de São Paulo, na década de 1970.

 

Autor: José Evangelista Moreira

Fonte: Jornal O Povo (http://www.opovo.com.br/app/colunas/aquitemciencia/2014/08/16/noticiaaquitemciencia,3298393/fazedores-de-chuva.shtml)

Posted in Links Interessantes | Leave a comment

Por que não somos todos bonitos

Supostamente, a seleção natural deveria promover a sobrevivência de machos fortes e saudáveis e fêmeas atraentes e férteis. Depois de um número finito de gerações, todos seriam belos. No entanto, basta olhar ao redor, ou, talvez, no espelho, para constatar que a coisa não é bem assim.

 

Pois bem, antes de contar o que a ciência tem a dizer acerca desse aparente paradoxo, repasso a opinião de um amigo meu sobre as diferenças dos comportamentos entre os sexos. Nada de pesquisa comprovada, só um palpite jocoso. Diz ele: “Noite de sexta, o homem se prepara para caçar mulher. Põe desodorante, bochecha desinfetante bucal, veste roupa nos trinques e sai para a balada. Chance de sucesso: uns 2%, se muito. Já a mulher, se está mesmo a fim, não precisa de nada disso para se dar bem”.

 

As leitoras talvez discordem dessa conjectura, mas, como veremos a seguir, ela tem alguma base nas observações da ciência.

 

Segundo a bióloga evolucionista Katharina Foerster, da Universidade de Edimburgo, que observou o comportamento de cervos selvagens, machos precisam competir durante quase a vida toda, para ganhar fêmeas e não investem nada na manutenção dos filhotes. Já as fêmeas só precisam se preocupar com sexo durante o tempo fértil, pois logo que tiverem cumprido seu dever evolutivo podem se dedicar em tempo integral aos cuidados da prole. É evidente que há uma assimetria entre os interesses e prioridades de machos e fêmeas. As pressões seletivas são divergentes e genes envolvidos na reprodução podem ter efeitos diferentes para cada sexo.

 

A bióloga estudou e acompanhou mais de oito gerações de cervos na Escócia, durante cerca de 30 anos, observando comportamentos e fazendo análises genéticas. O que viu foi um padrão inesperado: machos mais prolíficos tinham filhas que produziam um número de descendentes abaixo da média. Machos menos dotados (os “feios”, digamos) tinham filhas que geravam o número maior que a média de filhotes.

 

A explicação para esse fato, segundo a cientista, pode estar nos genes envolvidos na reprodução. Em sexos opostos, esses genes poderiam trabalhar uns contra os outros, no que se chama de “antagonismo sexual”. Isto é, o mesmo gene que leva a um macho sexualmente bem sucedido pode acabar produzindo fêmeas menos férteis.

 

Um gene cujo efeito é diminuir a fertilidade das fêmeas, em princípio, deveria ser eliminado pela seleção natural, pois o número de portadoras desse gene tenderia, obviamente, a diminuir a cada geração. Entretanto, esse mesmo gene pode ser benéfico de algum modo aos machos, aumentando, por exemplo, seu desempenho sexual. É aí que reside o tal antagonismo. Mesmo sendo prejudicial à fertilidade das fêmeas, o gene não é eliminado porque beneficia os machos, de alguma forma.

 

Além disso, esse gene antagonista tem que residir em um cromossomo X. Como é sabido, fêmeas possuem dois cromossomos X e machos possuem um cromossomo X e outro Y. Se o gene antagonista estivesse no cromossoma Y não poderia influenciar as características de fertilidade das fêmeas, como foi observado pela bióloga.

 

Qual seria a utilidade evolucionária desse curioso antagonismo? A cientista acha que pode ser uma estratégia da seleção natural para manter ou ampliar a diversidade genética. Em termos mais mundanos, todo mundo ser bonito e bem dotado pode não ser vantajoso para a espécie. Isso parece ser verdade para os cervos escoceses, mas ainda não se sabe se vale para os humanos.

As pressões seletivas são divergentes e genes envolvidos na reprodução podem ter efeitos diferentes para cada sexo

 

Em defesa dos feios

Hoje em dia, as chamadas “minorias” são protegidas por leis e cotas de vários tipos. Entretanto, existe uma parcela de gente que, aliás, nem é minoria, mas que é completamente desamparada e não goza de nenhum privilégio, por menor que seja. São os feios.

 

Os feios não aparecem nas novelas nem nas propagandas e costumam ser preteridos nas entrevistas para emprego. E essa lamentável discriminação não parece que vai desaparecer no futuro próximo. A julgar pelos adesivos dos candidatos que nos assediam, todos têm belos dentes e nenhuma ruga. É provável, portanto, que esse contingente de cidadãos continue sem representantes.

 

Torna-se urgente que se tome alguma providência para corrigir essa flagrante injustiça. Proponho a criação de uma ONG dedicada a proteger os banguelas e os carecas, os tortos e os narigudos, os cambotas e os zambetas. Que se lance um grande movimento com direito a passeata e vandalismo, se necessário. Ugly is beautiful!

Autor: José Evangelista Moreira

Fonte: Jornal O Povo (http://www.opovo.com.br/app/colunas/aquitemciencia/2014/08/02/noticiaaquitemciencia,3291072/por-que-nao-somos-todos-bonitos.shtml)

Posted in Links Interessantes | Leave a comment

Bactéria dos verdes mares

Ninguém duvida do potencial turístico das praias cearenses. O que pouca gente sabe é que, além de suas belezas inegáveis, nossa costa contém um tesouro biológico que poderá vir a ser um manancial de substâncias importantes para a produção de novas drogas e medicamentos. Infelizmente, o Brasil conhece e protege muito pouco sua vida marinha. Além do que, esses recursos podem vir a ser desperdiçados com o avanço da urbanização costeira.

A professora Letícia Lotufo, do Departamento de Fisiologia e Farmacologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), conhece bem esse lado promissor da biodiversidade do litoral nordestino e se dedica a explorá-lo e descobrir seu potencial como fonte de produtos medicinais. Seu grupo de pesquisa sabe que as espécies que vivem nas costas marinhas têm características próprias, diversas das terrestres, decorrentes de fatores específicos do meio onde proliferam.

Algumas dessas espécies são tipicamente nordestinas e estão sendo investigadas cuidadosamente pela equipe da pesquisadora que conta com cientistas de várias áreas e instituições. Uma das características buscadas nos compostos retirados dessas espécies marinhas é a sua citotoxicidade (propriedade que mede a capacidade de inibição do crescimento celular), sendo desejável que essa atividade seja seletiva para células de tumores. Verificou-se que a citotoxicidade das espécies marinhas é bem superior à apresentada por plantas terrestres usadas na produção de medicamentos.

Algumas espécies encontradas nas praias cearenses já se revelaram muito promissoras nesse aspecto. Um bom exemplo são as ascídias marinhas, pequenos invertebrados bastante conhecidos dos mergulhadores, já que costumam se fixar em rochas de águas rasas. Entre elas, a Eudistoma vannamei, vista na figura, é endêmica das praias nordestinas, da Bahia ao Ceará, e revelou-se muito rica em compostos de grande teor citotóxico em células tumorais.

O grupo da professora Letícia trabalha na pesquisa desses organismos marinhos há alguns anos. Inicialmente, os compostos pesquisados eram obtidos diretamente do manejo laboratorial de ascídias e esponjas encontradas em praias cearenses, e foram isoladas várias moléculas de grande interesse farmacológico. No entanto, esse processo é muito elaborado e pouco produtivo. Mais recentemente, surgiu a ideia de estudar especificamente os micro-organismos que vivem em simbiose com as espécies marinhas. No linguajar dos biólogos, esses micro-organismos, bactérias em sua maioria, formam a microbiota de um hospedeiro como a ascídia, por exemplo. A vantagem dessa estratégia é a possibilidade do uso de técnicas consagradas no cultivo dos micro-organismos, aumentando muito a eficiência de produção dos compostos de interesse medicinal.

Essa mudança no foco do trabalho resultou em grande sucesso, pois demonstrou que as bactérias são as verdadeiras responsáveis pela produção dos compostos de importância terapêutica. O estudo químico das moléculas produzidas pelas bactérias oriundas das ascídias revelou, por exemplo, a presença de antraciclinas, substâncias importantes no arsenal de quimioterápicos anticâncer.

Além disso, o estudo desses micro-organismos é muito importante por seu ineditismo e por eles se constituírem de espécies ainda muito pouco estudadas. Metade das espécies observadas ainda não tinha sido descrita, o que mostra que são específicas de nossa costa. Dessa forma, a partir de 2006, o grupo passou a estudar o potencial biotecnológico de bactérias marinhas obtidas nas praias de Icapuí, Taíba e Paracuru, entre outras.

As culturas de bactérias extraídas da ascídia Eudistoma vannamei resultaram no isolamento de alcaloides inéditos de alta atividade citotóxica, agindo, principalmente, em células em divisão. Foi feito o sequenciamento do DNA de algumas dessas bactérias que revelaram tratar-se do gênero Streptomyces sp. Uma das cepas, chamada de BRA-035, produziu um extrato que fez cessar por completo o crescimento in vitro de um carcinoma de próstata humano.

Os resultados obtidos demonstram um potencial biomédico muito valioso dos micro-organismos coletados no litoral cearense. Além disso, deve ser levado em conta o ganho relacionado ao uso de técnicas de isolamento e caracterização química e farmacológica das amostras.

Algumas espécies encontradas nas praias cearenses já se revelaram muito promissoras na produção de medicamentos

É doce trabalhar no mar
A linha de pesquisa adotada pelo grupo da professora Letícia Lotufo ainda conta com poucos profissionais no Brasil, mas se constitui em uma área excelente para a formação de novos cientistas.

O formato é tipicamente interdisciplinar, contando com médicos, biólogos marinhos, químicos e demais especialistas do Ceará e de outros estados. Minha impressão é que não deve ser muito difícil atrair jovens pesquisadores para esse trabalho que, além de sua relevância científica, propiciando boas teses e muitas publicações, tem a vantagem de ser, pelo menos em parte, realizado nas belas praias do nosso litoral.

Autor: José Evangelista Moreira

Fonte: Jornal O Povo (http://www.opovo.com.br/app/colunas/aquitemciencia/2014/06/21/noticiaaquitemciencia,3269798/bacterias-dos-verdes-mares.shtml)

Posted in Links Interessantes | Leave a comment