A insignificante leveza de ser… mosca

De repente, uma mosca mergulha na sua sopa. Desagradável! Esses seres insignificantes, desprezíveis! Argh! Apesar disso, esses pequenos insetos há muito tempo fazem sucesso na ciência como modelo para investigações biológicas e já nos ajudaram a compreender fenômenos que participam de problemas importantes, desde o alcoolismo à doença de Alzheimer. Como modelo experimental, em laboratório, as moscas oferecem várias vantagens como cobaias: possuem ciclo de vida curto (12 dias), são fáceis de criar e manter em cativeiro e possuem baixo número de cromossomos (4 pares; o homem possui 23), o que as tornam seres um pouco menos complexos que os animais filogeneticamente superiores. Apesar disso, cerca de 60% dos genes associados com câncer e doenças genéticas em seres humanos são também encontrados no genoma da mosca. Daí, pode-se ver que esse animalzinho talvez não seja tão desprezível, tão insignificante assim.

 

Grande contribuição dada pelas moscas ocorreu com a identificação de uma família de genes que codificam proteínas ditas do tipo Toll. Em alemão, Toll quer dizer excelente, legal, espantoso. Na última copa os torcedores alemães devem ter gritado “toll” umas sete vezes, ao menos. Essas proteínas foram identificadas por pesquisadores alemães na mosca-da-fruta (cujo nome científico é Drosophila melanogaster) e rendeu o prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia a Christiane Nüsslein-Volhard em 1995.

 

Nosso organismo é capaz de reconhecer agentes estranhos, patogênicos ou não, e isso é feito em parte através dessas proteínas Toll. Por exemplo, imagine um microorganismo invasor. Quando ativadas pela presença desse microorganismo, as proteínas Toll ativam células inflamatórias de defesa do hospedeiro cujo objetivo é aniquilar a invasão. A inflamação gerada como resposta nesse exemplo é a forma que nosso corpo tem que se defender da invasão dos micróbios.

 

Nos mamíferos, incluindo o homem, existem várias proteínas já caracterizadas como receptores do tipo Toll. Até agora, foram descritas 11 tipos dessas proteínas em humanos, cada uma delas parecendo desempenhar um papel no reconhecimento bacteriano por ativar as defesas inatas do corpo, aquelas que já nascemos com ela, nossas defesas naturais. E quem ativa essas proteínas? Existem vários e diversificados ligantes, como são chamados seus ativadores, muitos dos quais produtos microbianos que indicam a presença de infecção.

 

O receptor do tipo Toll 4 (TLR4) foi o primeiro a ser caracterizado em humanos. Ele existe em uma grande variedade de células, mas está predominantemente presente em células do sistema imunológico como nos macrófagos e nas células dendríticas, ambas chamadas de células apresentadoras de antígenos, cuja função é a de enredar às outras células de defesa quando nosso organismo está sob ameaça. Por afinidade química, o TLR4, digamos, é cutucado pelo LPS, uma endotoxina encontrada na superfície externa de várias bactérias. Quando essa interação acontece no nosso organismo, a detecção dessa toxina provoca forte resposta do sistema imunológico que pode se refletir, por exemplo, em febre, sinal de alerta para indicar que bactérias patogênicas estão “aprontando” conosco.

 

A diversidade de proteínas do tipo Toll é de fundamental importância para a defesa do organismo contra os inúmeros tipos de ameaças externas, como bactérias, vírus e fungos. Uma vez que estas proteínas sejam ativadas, haverá interpretação e tradução do sinal biológico através da indução de vários genes e a consequente produção de moléculas que atuam na conversação entre as diversas células de defesa do hospedeiro mediante ativação e modulação do processo inflamatório para, enfim, destruir os patógenos. Mas parece que não é só isso que elas são capazes de fazer.

 

Aqui pelo Ceará, por exemplo, tem gente interessada no estudo dessas proteínas. Já falamos anteriormente nesta coluna que a quimioterapia do câncer pode provocar inflamação intestinal, a mucosite. Pois bem, no decurso de uma mucosite, é possível ocorrer o rompimento da barreira de proteção intestinal em decorrência da agressão química provocada pelos remédios usados para combater o câncer. Como consequência, bactérias intestinais podem invadir a corrente sanguínea e causar danos no fígado, mais especificamente uma condição chamada de esteato-hepatite, ou seja, o fígado inflamado fica gorduroso. Esse é um dos temas estudados pelos pesquisadores que compõem o Núcleo de Estudos da Toxicidade do Tratamento Oncológico na Faculdade de Medicina da UFC, um dos mais respeitados grupos de pesquisa nessa área no Brasil.

 

Os estudos liderados pelos professores Ronaldo Ribeiro e Roberto César Lima Júnior incluem modelos experimentais desenvolvidos de forma inédita em camundongos e que simulam as toxicidades do tratamento do câncer em humanos. Através desse modelo experimental, foi possível confirmar que a esteato-hepatite, frequentemente observada em pacientes submetidos ao tratamento de câncer de cólon e de reto, é causada pela quimioterapia e que ela varia desde a simples esteatose até lesões hepáticas mais severas com ocorrência de fibrose e necrose, ou seja, as células do fígado passam uns perrengues danados. Dentre os mecanismos envolvidos na progressão dessa toxicidade sobre o fígado, a ativação de proteínas TLR4 parece desempenhar um papel central. E é exatamente para entender como proteínas Toll, como o TLR4, contribuem para causar essas respostas danosas ao fígado e em outros tecidos é que esses pesquisadores têm se dedicado a estuda-las.

 

É provável que as proteínas Toll se transformem em alvos para o desenvolvimento de novos medicamentos, mas ainda precisamos conhecer muito sobre o modo como elas funcionam no nosso organismo. Além disso, existem muitos outros fenômenos em que as moscas servem de modelo para o avanço da biologia como ciência, mas trataremos deles em outras oportunidades.

 

O texto de hoje foi escrito pelo farmacêutico Lucas de Lima Carvalho, estudante do Mestrado em Farmacologia da UFC, em parceira com o professor Roberto César Pereira Lima Júnior, ambos integrantes do projeto cearense que aborda os receptores Toll na toxicidade do tratamento oncológico.

 

* FONTE DA IMAGEM: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Drosophila-melanogaster-Nauener-Stadtwald-03-VII-2007-10.jpg?uselang=pt-br

 

Coluna Aqui tem ciência – Jornal O Povo

Fonte: http://www.opovo.com.br/app/colunas/aquitemciencia/2015/04/11/noticiaaquitemciencia,3421014/a-insignificante-leveza-de-ser-mosca.shtml

De repente, uma mosca mergulha na sua sopa. Desagradável! Esses seres insignificantes, desprezíveis! Argh! Apesar disso, esses pequenos insetos há muito tempo fazem sucesso na ciência como modelo para investigações biológicas e já nos ajudaram a compreender fenômenos que participam de problemas importantes, desde o alcoolismo à doença de Alzheimer. Como modelo experimental, em laboratório, as moscas oferecem várias vantagens como cobaias: possuem ciclo de vida curto (12 dias), são fáceis de criar e manter em cativeiro e possuem baixo número de cromossomos (4 pares; o homem possui 23), o que as tornam seres um pouco menos complexos que os animais filogeneticamente superiores. Apesar disso, cerca de 60% dos genes associados com câncer e doenças genéticas em seres humanos são também encontrados no genoma da mosca. Daí, pode-se ver que esse animalzinho talvez não seja tão desprezível, tão insignificante assim.

 

Grande contribuição dada pelas moscas ocorreu com a identificação de uma família de genes que codificam proteínas ditas do tipo Toll. Em alemão, Toll quer dizer excelente, legal, espantoso. Na última copa os torcedores alemães devem ter gritado “toll” umas sete vezes, ao menos. Essas proteínas foram identificadas por pesquisadores alemães na mosca-da-fruta (cujo nome científico é Drosophila melanogaster) e rendeu o prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia a Christiane Nüsslein-Volhard em 1995.

 

Nosso organismo é capaz de reconhecer agentes estranhos, patogênicos ou não, e isso é feito em parte através dessas proteínas Toll. Por exemplo, imagine um microorganismo invasor. Quando ativadas pela presença desse microorganismo, as proteínas Toll ativam células inflamatórias de defesa do hospedeiro cujo objetivo é aniquilar a invasão. A inflamação gerada como resposta nesse exemplo é a forma que nosso corpo tem que se defender da invasão dos micróbios.

 

Nos mamíferos, incluindo o homem, existem várias proteínas já caracterizadas como receptores do tipo Toll. Até agora, foram descritas 11 tipos dessas proteínas em humanos, cada uma delas parecendo desempenhar um papel no reconhecimento bacteriano por ativar as defesas inatas do corpo, aquelas que já nascemos com ela, nossas defesas naturais. E quem ativa essas proteínas? Existem vários e diversificados ligantes, como são chamados seus ativadores, muitos dos quais produtos microbianos que indicam a presença de infecção.

 

O receptor do tipo Toll 4 (TLR4) foi o primeiro a ser caracterizado em humanos. Ele existe em uma grande variedade de células, mas está predominantemente presente em células do sistema imunológico como nos macrófagos e nas células dendríticas, ambas chamadas de células apresentadoras de antígenos, cuja função é a de enredar às outras células de defesa quando nosso organismo está sob ameaça. Por afinidade química, o TLR4, digamos, é cutucado pelo LPS, uma endotoxina encontrada na superfície externa de várias bactérias. Quando essa interação acontece no nosso organismo, a detecção dessa toxina provoca forte resposta do sistema imunológico que pode se refletir, por exemplo, em febre, sinal de alerta para indicar que bactérias patogênicas estão “aprontando” conosco.

 

A diversidade de proteínas do tipo Toll é de fundamental importância para a defesa do organismo contra os inúmeros tipos de ameaças externas, como bactérias, vírus e fungos. Uma vez que estas proteínas sejam ativadas, haverá interpretação e tradução do sinal biológico através da indução de vários genes e a consequente produção de moléculas que atuam na conversação entre as diversas células de defesa do hospedeiro mediante ativação e modulação do processo inflamatório para, enfim, destruir os patógenos. Mas parece que não é só isso que elas são capazes de fazer.

 

Aqui pelo Ceará, por exemplo, tem gente interessada no estudo dessas proteínas. Já falamos anteriormente nesta coluna que a quimioterapia do câncer pode provocar inflamação intestinal, a mucosite. Pois bem, no decurso de uma mucosite, é possível ocorrer o rompimento da barreira de proteção intestinal em decorrência da agressão química provocada pelos remédios usados para combater o câncer. Como consequência, bactérias intestinais podem invadir a corrente sanguínea e causar danos no fígado, mais especificamente uma condição chamada de esteato-hepatite, ou seja, o fígado inflamado fica gorduroso. Esse é um dos temas estudados pelos pesquisadores que compõem o Núcleo de Estudos da Toxicidade do Tratamento Oncológico na Faculdade de Medicina da UFC, um dos mais respeitados grupos de pesquisa nessa área no Brasil.

 

Os estudos liderados pelos professores Ronaldo Ribeiro e Roberto César Lima Júnior incluem modelos experimentais desenvolvidos de forma inédita em camundongos e que simulam as toxicidades do tratamento do câncer em humanos. Através desse modelo experimental, foi possível confirmar que a esteato-hepatite, frequentemente observada em pacientes submetidos ao tratamento de câncer de cólon e de reto, é causada pela quimioterapia e que ela varia desde a simples esteatose até lesões hepáticas mais severas com ocorrência de fibrose e necrose, ou seja, as células do fígado passam uns perrengues danados. Dentre os mecanismos envolvidos na progressão dessa toxicidade sobre o fígado, a ativação de proteínas TLR4 parece desempenhar um papel central. E é exatamente para entender como proteínas Toll, como o TLR4, contribuem para causar essas respostas danosas ao fígado e em outros tecidos é que esses pesquisadores têm se dedicado a estuda-las.

 

É provável que as proteínas Toll se transformem em alvos para o desenvolvimento de novos medicamentos, mas ainda precisamos conhecer muito sobre o modo como elas funcionam no nosso organismo. Além disso, existem muitos outros fenômenos em que as moscas servem de modelo para o avanço da biologia como ciência, mas trataremos deles em outras oportunidades.

 

O texto de hoje foi escrito pelo farmacêutico Lucas de Lima Carvalho, estudante do Mestrado em Farmacologia da UFC, em parceira com o professor Roberto César Pereira Lima Júnior, ambos integrantes do projeto cearense que aborda os receptores Toll na toxicidade do tratamento oncológico.

 

* FONTE DA IMAGEM: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Drosophila-melanogaster-Nauener-Stadtwald-03-VII-2007-10.jpg?uselang=pt-br

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