Fortaleza, 22 de março de 2015.
Doutor Ronaldo,
Espero que esta esta carta o encontre com saúde, pois resolvi escrevê-la para me despedir do amigo, permita-me chamá-lo assim. Os últimos tempos foram difíceis, senti minha vida por um fio. Tudo começou quando percebi um sangramento no sanitário ao fazer o “número 2”. Hemorroidas, pensei eu! A contragosto, procurei-o em consulta médica. Câncer intestinal foi surpresa angustiante. Eu e minha família não nos preparamos para tal provação. Questionei minha fé, senti-me só, sem saída. Lembrei-me da afirmação que ouvira certa ocasião: câncer tem cura, mas a medicina não a revela. Revoltei-me a ponto de questionar o amigo de forma rude em uma das consultas. Queira me desculpar.
Suas explicações foram importantes. Esclareceram dúvidas e diminuíram minha revolta. Compreendi que dependeria de mim. Enfrentei de peito aberto! Na realidade, abdômen, pois me submeti à cirurgia. Ah, se pudesse voltar ao passado! Se soubesse que esse tumor poderia ser detectado no início, ainda um pólipo. Não pestanejaria em me submeter a essa tal colonoscopia. Foi difícil passar por exame tão ultrajante. Como fui tolo, reconheço!
Depois, veio a quimioterapia, nome garboso na pronúncia, assombroso na oitiva. Por que deveria? Acabara de extirpar o tumor! Entendi que seria necessária mesmo assim. Algumas células intestinais se dividem aos milhares, diariamente, num processo natural em que células novas substituem as velhas. Ao longo da vida, essas células podem sofrer mutações mais frequentemente. Sendo células mutantes anormais, dividem-se e multiplicam-se cada vez mais e, sem controle, viram um tumor. É difícil combatê-las apenas com nossas defesas naturais e o tumor inicial cresce. Algumas dessas células se desgrudam dele, migram e se multiplicam em outros locais do organismo, as metástases, revelando sua malignidade.
Resignado, cedi. O olhar de minha esposa denunciava que devia isso a ela. Deixei que vocês me injetassem substâncias que, levadas pelo sangue, combateriam essa mazela em meu corpo. Como células tumorais se reproduzem desenfreadamente, o DNA, tão comum nos testes de paternidade da TV, passa a ser estratégico. Nele está o código genético das células. Os medicamentos injetados deveriam impedir a replicação desse DNA em novas células mutantes, cancerígenas. Mas, como não só as células cancerígenas se dividem, ficou rala minha cabeleira, tão vasta quando jovem. Fiquei anêmico, minhas hemácias ficaram escassas. Qualquer tosse preocupava. Meus leucócitos, células responsáveis por minhas defesas naturais, ficaram desmilinguidos em minhas veias. Pude entender então que a medula óssea, local que produz as células do sangue, foi atingida com meu martírio.
Vi que não era o único a merecer tamanho fardo. De cada cinco pacientes que enfrentavam essas agruras ao meu lado, quatro apresentavam-se assim. Nada incomodava tanto quanto as feridas adquiridas na parte interna da boca, processo que vocês chamam de mucosite. Perdi o apetite e vomitava facilmente. Como se não bastasse, passei a sofrer diarreias e isso me tornava susceptível a infecções, fruto das invasões microbianas. Por vezes você interrompeu minha terapia até que me recuperasse desses golpes.
Apesar de tudo, resisti. Dos alunos que sempre lhe acompanhavam, ouvi que o tratamento que dispúnhamos no Hospital Haroldo Juaçaba era o mesmo dos melhores hospitais do país. Não precisaria sair da convivência de minha família para me tratar. Confiante fiquei quando soube que a mucosite era seu principal interesse de estudo. Vocês dedicam os melhores esforços para entender como a quimioterapia pode causá-la. Amenizar nosso sofrimento é o seu intento, mas o problema é complexo. Mal compreendido, atualmente tratam-se os sintomas, não as causas.
É admirável como vocês decifram o modo como as nossas células reagem a esse emaranhado de proteínas produzidas pelo ambiente tumoral. Todas elas interconectadas, uma interferindo na função da outra, formando uma rede de comunicação entre células. Memorizei os nomes de algumas delas: TNF alfa, interleucina 1, esquisitos, diga-se de passagem. Vi na internet que existem várias dessas tais interleucinas e, numa das sessões de quimioterapia no hospital, seus alunos comentaram na minha presença que um estudo de vocês foi pioneiro em mostrar a interleucina-18 como uma das causadoras da mucosite. Acho que é como encontrar agulha num palheiro. É, amigo, andei estudando sobre isso! Eles pareciam entusiasmados porque esse estudo foi parar na Inglaterra, numa das melhores revistas científicas do mundo. Parabéns! Torço para que descubram como inibir essa proteína, pois, sendo ela culpada, provavelmente isso seria melhor para os pacientes que precisam da quimioterapia.
Por falar nisso, preciso me despedir do amigo já que minhas sessões acabaram. Não sem antes agradecer por tudo. Espero não vê-lo tão cedo (perdoe-me, não é por mal)! Tenho ido passar meus fins de semana na praia. Revejo o mar, os amigos, jogo minhas partidas de buraco e aproveito o convívio com os netos. E que as coisas continuem melhorando como estão agora, cada vez mais, pois como já disse nosso conterrâneo Chico Anysio, até aos cem eu vou… devo ir… talvez eu vá…
Do amigo, Fernandes
P.S.: sempre tem um quarto disponível aos amigos lá em casa, apareça!
A convite do colunista, o texto de hoje é de Pedro Jorge Magalhães, professor da Faculdade de Medicina da UFC e integrante da Seara da Ciência.
Coluna Aqui tem ciência – Jornal O Povo
Fonte: http://www.opovo.com.br/app/colunas/aquitemciencia/2015/03/14/noticiaaquitemciencia,3406314/a-despedida-de-um-paciente-em-quimioterapia.shtml