São Tomé, o padroeiro dos cientistas

“Depois disse a Tomé: põe aqui o teu dedo, e vê as minhas mãos; e chega a tua mão, e põe-na no meu lado; e não sejas incrédulo, mas crente”. A passagem bíblica (João 20:27) está retratada na pintura de Caravaggio, pintor italiano do fim do século XVI. Nela, o apóstolo incrédulo Tomé é instigado por Jesus ressuscitado a ver e até tocar nas chagas abertas a ferro romano.

 

O ato rendeu a Tomé um puxão de orelha e a criação de um dito – “porque me viste, Tomé, creste; bem-aventurados os que não viram e creram”. Entretanto, revela a postura típica do cientista ao questionar a veracidade da informação de terceiros, o ceticismo. Além daí, chega-se a Descartes e, num pulo, temos o método científico. Assim o homem tem construído suas convicções na dicotomia ciência-religião, algumas vezes antagônicas, noutras inseparáveis.

 

Tomé desejava pelo menos ver, e viu a olho nu. Não sabemos se enxergava bem, mas quem sabe tivesse presbiopia, a vista cansada legítima dos mais vividos. Naquele tempo não existiam óculos, pois os primeiros registros do uso de lentes corretivas datam do século I d.C. Para amplificar sua visão, o homem criou instrumentos ópticos.

 

Sendo Tomé protótipo do curioso, ficaria boquiaberto se fosse teletransportado ao século XVII, tempo de Galileu Galilei, o primeiro a usar um telescópio astronômico. Visse Tomé o que viu Galileu, sua incredulidade estaria novamente em xeque! Estivesse ele no início do século XX, conheceria Georges Lamaître e a teoria do “ovo cósmico” – o universo surge do “átomo primordial”, não no Jardim do Éden. Segundo Lamaître, o universo está em expansão, hipótese comprovada pelas observações do astrônomo Edwin Hubble. Imagine só o farnesim de Tomé ao espiar pelo telescópio de Hubble.

 

A figura da religião sempre rondou esses momentos. Pela heresia, o cristão Galileu foi condenado pela Inquisição em 1633 e, para escapar da fogueira, desmentiu tudo. Lamaître era padre e presidiu a Pontifícia Academia de Ciências, a mais antiga do mundo em atividade. Criada em Roma em 1603 por Federico Cesi, era chamada de Academia dos Linces e Galileu foi um dos primeiros membros.

 

Observando-se novamente a pintura de Caravaggio, talvez Tomé não quisesse olhar as estrelas, mas as minúcias. Quiçá um microscópio fosse mais apropriado a sua curiosidade. Na época de Galileu, o microscópio existia. Assim como o telescópio, a origem do microscópio parece ser holandesa e, a pedido do papa Urbano VII, coube ao membro da Academia dos Linces Johann Giovanni Faber dar um nome à invenção a partir da junção das palavras gregas mikrós (pequeno) e skopeîn (olhar).

 

Segundo a doutora Rosemayre Freire, técnica em microscopia da Central Analítica da Universidade Federal do Ceará (UFC), o microscópio evoluiu bastante desde então. Criou-se uma base fixa para maior estabilidade, lentes mais nítidas e foco mais preciso. Incorporou-se a fluorescência, isso é, a amostra observada emite luz ao invés de somente refleti-la ao observador. Esse avanço foi tão significativo que deu a Osamu Shimomura e colegas o Nobel de Química de 2008. Eles descreveram a proteína GFP, de fluorescência verde. O uso de fluorescência em microscopia evoluiu tanto que o Nobel de Química de 2014 acaba de ser dado a Eric Betzig, Stefan Hell e William Moerner, cujos trabalhos permitiram o que se chama de nanoscopia, isso é, aparelhos que permitem visualizar estruturas do tamanho de moléculas.

 

Com essa técnica, Tomé conseguiria ver fenômenos biológicos acontecendo ao vivo numa célula disposta em um microscópio confocal. Ao mesmo tempo em que emite um feixe de laser na amostra, esse aparelho capta seletivamente a fluorescência irradiada pela amostra com comprimentos de onda específicos para formar imagens incríveis, inclusive aos olhos de nosso viajante.

 

Com os microscópios ópticos modernos, Tomé conseguiria ver objetos com até 0,2 micrômetros, o tamanho de alguns vírus, limite imposto pelo menor comprimento de onda do espectro visível. É isso mesmo, só enxergamos até o violeta, cujo comprimento é aproximadamente 0,4 micrômetros. Coisas menores só mesmo com o microscópio eletrônico. Mas aí, calma gente… coitado do Tomé, é muita informação em tão pouco tempo!

 

Agora, se nossos personagens viessem parar no Ceará, Tomé certamente visitaria a doutora Rosemayre e, imaginando todos diante de um microscópio confocal, ousaria ouvir Tomé pronunciar num arrastado sotaque aramaico: “diabeisso, máh! Que leruáite miúdo, menor que um mucuim. Aprender, isso sim é uma boa aventura!”.

 

“Sendo Tomé protótipo do curioso, ficaria boquiaberto se fosse teletransportado ao século XVII, tempo de Galileu Galilei”

 

Microscopia na UFC

A Universidade Federal do Ceará (UFC) dispõe de dois núcleos avançados em microscopia, a Central Analítica, recém-inaugurada no campus do Pici, e o Núcleo de Estudos de Microscopia e Estudos de Imagem (Nempi), em funcionamento no campus do Porangabuçu. São equipados com microscópios confocais e eletrônicos e estão disponíveis a usuários de diversas áreas do conhecimento, garantindo tecnologia de ponta às pesquisas científicas feitas no Ceará.

 

Acesse: www.centralanalitica.ufc.br

www.nempi.ufc.br

 

O professor Pedro Magalhães, da Faculdade de Medicina da UFC e da Seara da Ciência, escreve a coluna de hoje a convite do colunista José Evangelista..

Coluna Aqui tem ciência – Jornal O Povo

Fonte: http://www.opovo.com.br/app/colunas/aquitemciencia/2014/12/06/noticiaaquitemciencia,3358084/sao-tome-o-padroeiro-dos-cientistas.shtml

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