Bactéria dos verdes mares

Ninguém duvida do potencial turístico das praias cearenses. O que pouca gente sabe é que, além de suas belezas inegáveis, nossa costa contém um tesouro biológico que poderá vir a ser um manancial de substâncias importantes para a produção de novas drogas e medicamentos. Infelizmente, o Brasil conhece e protege muito pouco sua vida marinha. Além do que, esses recursos podem vir a ser desperdiçados com o avanço da urbanização costeira.

A professora Letícia Lotufo, do Departamento de Fisiologia e Farmacologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), conhece bem esse lado promissor da biodiversidade do litoral nordestino e se dedica a explorá-lo e descobrir seu potencial como fonte de produtos medicinais. Seu grupo de pesquisa sabe que as espécies que vivem nas costas marinhas têm características próprias, diversas das terrestres, decorrentes de fatores específicos do meio onde proliferam.

Algumas dessas espécies são tipicamente nordestinas e estão sendo investigadas cuidadosamente pela equipe da pesquisadora que conta com cientistas de várias áreas e instituições. Uma das características buscadas nos compostos retirados dessas espécies marinhas é a sua citotoxicidade (propriedade que mede a capacidade de inibição do crescimento celular), sendo desejável que essa atividade seja seletiva para células de tumores. Verificou-se que a citotoxicidade das espécies marinhas é bem superior à apresentada por plantas terrestres usadas na produção de medicamentos.

Algumas espécies encontradas nas praias cearenses já se revelaram muito promissoras nesse aspecto. Um bom exemplo são as ascídias marinhas, pequenos invertebrados bastante conhecidos dos mergulhadores, já que costumam se fixar em rochas de águas rasas. Entre elas, a Eudistoma vannamei, vista na figura, é endêmica das praias nordestinas, da Bahia ao Ceará, e revelou-se muito rica em compostos de grande teor citotóxico em células tumorais.

O grupo da professora Letícia trabalha na pesquisa desses organismos marinhos há alguns anos. Inicialmente, os compostos pesquisados eram obtidos diretamente do manejo laboratorial de ascídias e esponjas encontradas em praias cearenses, e foram isoladas várias moléculas de grande interesse farmacológico. No entanto, esse processo é muito elaborado e pouco produtivo. Mais recentemente, surgiu a ideia de estudar especificamente os micro-organismos que vivem em simbiose com as espécies marinhas. No linguajar dos biólogos, esses micro-organismos, bactérias em sua maioria, formam a microbiota de um hospedeiro como a ascídia, por exemplo. A vantagem dessa estratégia é a possibilidade do uso de técnicas consagradas no cultivo dos micro-organismos, aumentando muito a eficiência de produção dos compostos de interesse medicinal.

Essa mudança no foco do trabalho resultou em grande sucesso, pois demonstrou que as bactérias são as verdadeiras responsáveis pela produção dos compostos de importância terapêutica. O estudo químico das moléculas produzidas pelas bactérias oriundas das ascídias revelou, por exemplo, a presença de antraciclinas, substâncias importantes no arsenal de quimioterápicos anticâncer.

Além disso, o estudo desses micro-organismos é muito importante por seu ineditismo e por eles se constituírem de espécies ainda muito pouco estudadas. Metade das espécies observadas ainda não tinha sido descrita, o que mostra que são específicas de nossa costa. Dessa forma, a partir de 2006, o grupo passou a estudar o potencial biotecnológico de bactérias marinhas obtidas nas praias de Icapuí, Taíba e Paracuru, entre outras.

As culturas de bactérias extraídas da ascídia Eudistoma vannamei resultaram no isolamento de alcaloides inéditos de alta atividade citotóxica, agindo, principalmente, em células em divisão. Foi feito o sequenciamento do DNA de algumas dessas bactérias que revelaram tratar-se do gênero Streptomyces sp. Uma das cepas, chamada de BRA-035, produziu um extrato que fez cessar por completo o crescimento in vitro de um carcinoma de próstata humano.

Os resultados obtidos demonstram um potencial biomédico muito valioso dos micro-organismos coletados no litoral cearense. Além disso, deve ser levado em conta o ganho relacionado ao uso de técnicas de isolamento e caracterização química e farmacológica das amostras.

Algumas espécies encontradas nas praias cearenses já se revelaram muito promissoras na produção de medicamentos

É doce trabalhar no mar
A linha de pesquisa adotada pelo grupo da professora Letícia Lotufo ainda conta com poucos profissionais no Brasil, mas se constitui em uma área excelente para a formação de novos cientistas.

O formato é tipicamente interdisciplinar, contando com médicos, biólogos marinhos, químicos e demais especialistas do Ceará e de outros estados. Minha impressão é que não deve ser muito difícil atrair jovens pesquisadores para esse trabalho que, além de sua relevância científica, propiciando boas teses e muitas publicações, tem a vantagem de ser, pelo menos em parte, realizado nas belas praias do nosso litoral.

Autor: José Evangelista Moreira

Fonte: Jornal O Povo (http://www.opovo.com.br/app/colunas/aquitemciencia/2014/06/21/noticiaaquitemciencia,3269798/bacterias-dos-verdes-mares.shtml)

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