Os físicos mostraram que as propriedades dos gases (como pressão, temperatura etc) resultam de interações entre moléculas que se movem de forma aparentemente desordenada. Embora não seja prático descrever o comportamento de uma molécula individual separadamente, o conjunto delas faz surgir uma propriedade que pode ser descrita matematicamente e medida em laboratório com grande precisão.
Recentemente, surgiu a pergunta: Será que o comportamento de grandes agrupamentos humanos também segue um padrão passível de descrição matemática? Indivíduos têm liberdade de escolha – o famoso “livre arbítrio”- mas, pode ser que a interação entre um número muito grande de pessoas leve a um comportamento coletivo emergente.
Eleições são adequadas a esse tipo de análise, pois agregam a participação de muita gente em um só evento. Além disso, os dados são facilmente acessados pela internet em países democráticos. Em uma eleição proporcional, por exemplo, o número de candidatos e de eleitores é suficiente para uma boa análise estatística.
No final da década de 90, o professor Raimundo Costa Filho, do Departamento de Física da Universidade Federal do Ceará (UFC), juntamente com um grupo de colegas do qual fiz parte, analisou estatisticamente os resultados da eleição de 1998. Decidiu-se colocar em gráficos as votações para deputado em todo o Brasil. Nosso sistema eleitoral oferece muitas vantagens para esse tipo de estudo, pois o voto é compulsório, o número de eleitores é enorme e os resultados estão disponíveis na rede com grande rapidez.
A curva obtida, vista na Figura 1, mostrou que há um padrão inequívoco. Nesse gráfico, N é o número de candidatos que obtiveram v votos. Deixando de lado as pontas da curva que mostram os números para candidatos com poucos votos (lado esquerdo) ou muitos votos (lado direito), a parte central exibe um padrão que os físicos conhecem bem. A inclinação da reta vista na parte central do gráfico é típica de uma coisa que eles chamam de “invariância de escala”. Esse mesmo padrão surge em um grande número de fenômenos aparentemente desconexos, como a distribuição temporal de terremotos, as flutuações na bolsa de valores e os sinais de um eletro-encefalograma. No caso de eleições, a invariância de escala pode decorrer de interações entre os eleitores que se estendem desde troca de informações entre vizinhos até a influência dos noticiários de rádio e TV e das pesquisas de intenção de voto.
O trabalho dos físicos cearenses deu início a uma linha de pesquisa que movimentou grupos de vários países, a maioria da Europa. Procurava-se saber se os resultados das estatísticas brasileiras também surgiam em outras democracias com sistema eleitoral similar ao nosso. Pesquisadores europeus argumentaram que os cearenses deveriam ter levado em conta a separação dos candidatos por partido, pois essa escolha pode ter muito impacto nos resultados da estatística. A Figura 2 mostra as curvas que eles obtiveram para vários países europeus. Note que, nessas curvas, o número de votos v está dividido pelo número médio v0 de votos dos candidatos de cada partido. O leitor não precisa entender os detalhes desse gráfico, basta constatar que os valores para diferentes países e datas seguem o mesmo padrão, atestando um comportamento coletivo que se estende por contextos culturais e econômicos bastante diversos. Note também que esse padrão difere do padrão inicial observado pelo grupo cearense que, contrariamente ao resultado europeu, não apresenta um máximo.
Tentando explicar essa diferença, em 2009, Costa Filho e Luiz Araripe repetiram a análise das eleições brasileiras em três ocasiões, desta vez levando em conta a distribuição dos votos por partidos. Para visualizar a comparação, esses dados foram colocados junto aos obtidos em um país europeu, no caso, a Finlândia. As curvas das eleições brasileiras mantiveram, com grande consistência, o mesmo padrão visto anteriormente, enquanto o resultado da Finlândia segue uma curva bem diferente. As razões para essa diferença tão acentuada entre as curvas brasileiras e europeias ainda são objeto de pesquisa e sua compreensão poderá trazer informações valiosas em estudos futuros.
NOTA TÉCNICA: Todos os gráficos estão em escala logarítmica.
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E nós com isso?
Os e(leitores) certamente perguntarão como essas curvas tão persistentes podem orientá-los nas suas escolhas de voto. E os candidatos adorariam saber se elas indicam alguma estratégia para ganhar mais votos. Infelizmente (ou, talvez, felizmente) a resposta é negativa. Seu voto individual é importante, é claro, mas não determina o resultado final de uma eleição. Trocar de candidato não vai mudar o formato geral das curvas. Do mesmo modo, uma molécula pode inverter sua trajetória e também não mudará em nada a pressão ou a temperatura do gás.
Autor: José Evangelista Moreira
Fonte: Jornal O Povo (http://www.opovo.com.br/app/colunas/aquitemciencia/2014/04/26/noticiaaquitemciencia,3241119/as-curvas-da-democracia.shtml)